Beth Carvalho se consagra no samba: a maior manifestação cultural popular

Lenin Novaes*

Da desconfiança inicial de oportunista, vista com suspeição por alguns integrantes de núcleos de samba, à consagração, reconhecida como Madrinha do Samba, a cantora Beth Carvalho se consagrou no gênero musical da maior manifestação cultural popular. No ano passado, aos 70 anos, ela completou meio século de carreira artística. A interpretação de “Andança”, de Edmundo Souto, Paulinho Tapajós e Danilo Caymmi, com a qual obteve o 3º lugar no III Festival Internacional da Canção, em 1968, é o seu hit de maior abrangência nacional, ainda nos dias de hoje. Segue contagiando gerações e faz parte de shows de artistas amadores em todo circuito do país e integra currículo de escola de música.

Beth canta para 30 mil pessoas no Festival Internacional da Utopia, em Maricá, no RJ, ano passado (Fotos: acervo Lenin Novaes)

“Vim, tanta areia andei/Da lua cheia eu sei/Uma saudade imensa/Vagando em verso eu vim/Vestido de cetim/Na mão direita, rosas/Vou levar/Olha a lua mansa (me leva amor)/Se derramar/Ao luar descansa/Meu caminhar (amor)/Meu olhar em festa (me leva amor)/Se fez feliz/Lembrando a seresta/Que um dia eu fiz (por onde for quero ser seu par)/Já me fiz a guerra (me leva amor)/Por não saber/Que esta terra encerra/Meu bem-querer (amor)/E jamais termina/Meu caminhar (me leva amor)/Só o amor me ensina/Onde vou chegar (por onde for quero ser seu par)/Rodei de roda, andei/Dança da moda, eu sei/Cansei de ser sozinha/Verso encantado usei/Meu namorado é rei/Nas lendas do caminho/Onde andei/No passo da estrada (me leva amor)/Só faço andar/Tenho meu amor/Pra me acompanhar(amor)/Vim de longe léguas/Cantando eu vim (me leva amor)/Vou, não faço tréguas/Sou mesmo assim (por onde for quero ser seu par)/Já me fiz a guerra (me leva amor)/Por não saber/Que esta terra encerra (amor)/Meu bem-querer/E jamais termina meu caminhar (me leva amor)/Só o amor me ensina/Onde vou chegar (por onde for quero ser par)”.

“Andança” dá título ao primeiro disco dela, 1969, e integra o repertório “Um amor em cada coração”, Baden Powell e Vinícius de Moraes; “Rumo sul”, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós; “Estrela do mar”, Marino Pinto e Paulo Soledade; “Maria favela”, Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle; e “Samba do perdão”, Baden Powell e Paulo César Pinheiro, entre outras. No disco seguinte, Canto por um novo dia, realça “Velhice da porta-bandeira”, Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro; “Hora de chorar”, Mano Décio da Viola e Jorge Pessanha; “Folhas secas”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito; “Fim de reinado”, Martinho da Vila; e “Homenagem a Nelson Cavaquinho”, Carlos Elias. Eis “A velhice da porta-bandeira”:

“Ela renunciou/A Mangueira saiu, ela ficou/Era porta-bandeira/Desde a primeira vez/Por que terá sido isso que ela fez/Não, ninguém saberá/Ela se demitiu, outra virá/Ninguém a viu chorando/Coisa tão singular/Quando a bandeira tremeu no ar/Ô… quando toda avenida sambou/O seu mundo se  desmoronou/Ela se emocionou/Perto dela ela ouviu, alguém gritou:/”Viva a porta-bandeira”/”Sou eu”, ela pensou/Mas foi a outra quem se curvou/Ô… quando toda avenida sambou/O seu mundo se desmoronou/Ô… quando a porta-bandeira passou/Quem viu/Ela se levantou e aplaudiu”.

Programa de calouros

Beth era a intérprete preferida de Cartola, autor de “As rosas não falam”

Carioca, nascida em 1946, Elizabeth Santos Leal de Carvalho, filha de João Francisco Leal de Carvalho e Maria Nair Santos Leal de Carvalho, participou de programa de calouro na Rádio Mayrink Veiga e estudou iniciação musical, antes dos dez anos. No início dos anos 1960 cantou em shows de bossa-nova em colégios, gravando a música “Por quem morrer de amor”, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, em compacto simples, em 1965. Cantou nos espetáculos Música Nossa, ao lado de Tibério Gaspar e Egberto Gismonti; e Hora e vez do samba, com Zé Keti e os Cinco Crioulos. Integrou conjunto com Antonio Adolfo, Chico Batera, Luis e Eduardo Conde, gravando o disco Muito na onda. Com Milton Nascimento e Marcos Valle participou do show Diálogo. E foi a partir da gravação do samba-enredo “Rio Grande do Sul na festa do preto forro”, da escola de samba Unidos de São Carlos, de 1972, que ela fez opção pelo samba.

Passou a frequentar núcleos de samba, com olhar de suspeição de alguns sambistas ortodoxos, mas, a desconfiança foi se dissipando e deu lugar ao respeito de quem abraçou com fervor e dedicação o gênero de maior manifestação musical do Brasil. A carreira tem lhe proporcionado inúmeras conquistas, com mais de 30 discos gravados, cinco DVDs, seis Prêmios Sharp, 17 discos de ouro, nove de platina, dois DVDs de platina, além de outras premiações. Fez shows na Alemanha, França, Itália, Áustria, Estados Unidos, Uruguai, Argentina, África do Sul e Angola, além de capitais e grandes cidades brasileiras.

Com a inauguração do sambódromo, em 1984, foi tema enredo da Unidos do Cabuçu: “Beth Carvalho, a enamorada do samba”, que deu título de campeã à escola e a conduziu ao Grupo Especial. No ano seguinte também foi enredo da escola Bohêmios de Inhaúma, Em 2010 a escola Imperatriz Dona Leopoldina, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a homenageou com o tema “Madrinha do samba”. Este mesmo título também foi enredo da escola Acadêmicos do Tatuapé, de São Paulo, em 2013. E a interpretação dela de “Coisinha do pai”, de Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos da Vila, foi escolhida pela engenheira brasileira da NASA, Jacqueline Lyra, para ‘acordar’ o robô em Marte., em 1997.

No disco Prá seu governo, de 1974, Beth Carvalho, tem a participação de seu ídolo, o compositor Nelson Cavaquinho, em “Miragem”, dele em parceria com Guilherme de Brito, abrindo o repertório, que consta de “1800 colinas”, Gracia do Salgueiro; “Maior e Deus”, Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro; “Fim do sofrimento”, Monarco; “Prá ninguém chorar”, Edmundo Souto e Paulo César Pinheiro; “Falência”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito; e “Agora é Portela 74”. Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, entre outras. Destaque para “Gota d’água”, Chico Buarque de Holanda; “O pior é saber”, Walter Rosa; “Onde está a honestidade”, Noel Rosa; e “Cansaço”, Edmundo Souto e Paulo César Pinheiro, no disco Pandeiro e viola, de 1975. No ano seguinte lançou Mundo melhor, com destaque para “As rosas não falam”, Cartola.

Autores de alto quilate

As moças eram tristes como os pais/E tinham suas histórias muito iguais/No quarto o pai bebendo de fastio/Na sala a mãe rolando com o vadio/E as moças com pavor a se encolherem sob o cobertor/Com febre e frio/E um dia então cruzaram-se num bar/Estranhamente olharam-se no olhar/E como quem aceita um desafio/As moças num sinistro rodopio/A sós deram-se as mãos/E em se tocando foram mergulhando num vazio/Viveram desde aí, mais sós/Ficaram desde aí, brutais/E dentro deste amor feroz/Só buscavam paz/E um pacto fatal se fez/Em meio a festas saturnais/E a beira de um canal sombrio/Olharam longamente o rio/E foram-se pra nunca mais”.

“As moças”, Paulinho Soares e Paulo César Pinheiro, integra o disco Nos botequins da vida, de 1997, cuja letra acima mostra autores de alto quilate, inseridos no repertório com “Vingança”, Carlos Cachaça; “Se você me ouvisse”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito; “Desengano”, Aniceto; “Sempre só”, Edmundo Souto e Joaquim Vaz de Carvalho: e “O mundo é um moinho”, Cartola. De pé no chão, de 1978, tem “Vou festejar”, Jorge Aragão, Neoci e Dida; “Goiabada cascão”, Wilson Moreira e Nei Lopes; “Agoniza, mas não morre”, Nelson Sargento; “Você, eu e a orgia”, Candeia e Martinho da Vila.

Beth Carvalho no pagode, de 1979, tem “Coisinha do pai”, “Não chora neném”, Dona Ivone Lara; “Tem nada não”, Almir Guineto, Luverci Ernesto e Jorge Aragão; e “Obrigado pelas flores”, Monarco e Manacéa. No Sentimento brasileiro, de 1980, “A chuva cai”, Argemiro e Casquinha; “Voltei”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito; “Rochedo”, Noca da Portela e Zé Maranhão; “Você pensa que me apaixonei”, Monarco e Alcides (Malando Histórico); “O sonho não acabou”, Luiz Carlos da Vila; “Consideração”, Cartola e Heitor dos Prazeres; e “Chorando pela natureza”, João Nogueira e Paulo César Pinheiro, cuja letra publico abaixo.

Para Beth Carvalho o samba é de esquerda

“A natureza está clamando/De tanto lutar não resistiu/E a poesia está chorando/Sobre o corpo do Brasil/A natureza está clamando/De tanto lutar não resistiu/E a poesia está chorando/Sobre o corpo do Brasil/As matas sumindo da nossa bandeira/O ouro cruzando as fronteiras do mar/O azul é só poeira/O branco em guerra está/E o nosso índio tombou/Pouca gente lutou/Pela sua defesa/E o canto dos pássaros se calou/E o leito dos rios secou/O país todo é uma tristeza/E poeta que sou/Num canto de dor/Eu choro pela natureza/E poeta que sou/Num canto de dor/Eu choro pela natureza”.

De 1981, Na fonte, reune “Virada”, Noca da Portela e Gilper; “Morrendo de saudade”, Wilson Moreira e Nei Lopes; “Dança da solidão”, Paulinho da Viola; “Tendência”, Dona Ivone Lara e Jorge Aragão”; “Pedaço de ilusão”, Jorge Aragão, Sombrinha e Jotabe. Traço de união, de 1982, traz “Força da imaginação”, Dona Ivone Lara e Caetano Veloso; “Disfarce”, Noca da Portela e Edmundo Souto; “Enquanto a gente batuca”, Ivan Lins, Vitor Martins e Nei Lopes; “Coração poeta”, Nelson Cavaquinho e Paulinho Tapajós; “Camarim”, Cartola e Hermínio Bello de Carvalho. Em 1983, Suor no rosto, apresenta “Caciqueando”, Noca da Portela; “Amargo presente”, Cartola; “Doce refúgio”, Luiz Carlos da Vila.

“Toque de malícia”, Jorge Aragão; “São José de Madureira”, Beto Sem Braço e Zeca Pagodinho (participação de Martinho da Vila); “Canto de rainha”, Arlindo Cruz e Sombrinha (participação de Dona Ivone Lara e Grupo Fundo de Quintal), entre outras, estão no disco Coração feliz, de 1984. Das bençãos que virão com os novos amanhãs, de 1985, “Cinelândia”, Cláudio Cartier e Paulo Feital (participação de Grande Otelo); “Malandro sou eu”, Arlindo Cruz, Sombrinha e Franco; “Talismãs”, Ivor Lancelloti e Paulo César Pinheiro; “Não dá prá guardar”, Martinho da Vila e Cabana. De 1986, Beth, com “Nas veias do Brasil”, Luiz Carlos da Vila; “Coisa de pele”, Jorge Aragão e Acyr Marques. Brasileira da gema, de 1996, reúne “Desilusão de amor”, Sombra e Paulo César Pinheiro; “Saudade que não se desfaz”, Sombrinha e Franco. Em Pérolas do pagode, de 1998, “Não é assim”, Paulinho da Viola; “O show tem que continuar”, Sombrinha, Arlindo Cruz e Luiz Carlos da Vila, cuja letra é a seguinte:

Lalaia lalaia laia/Lalaia lalaia laia/Lalaia Lalaia laaaia/O teu choro já não toca/Meu bandolim/Diz que minha voz sufoca/Teu violão/Afrouxaram-se as cordas/E assim desafina/E pobre das rimas/Da nossa canção/Hoje somos folha morta/Metais em surdina/Fechada a cortina/Vazio o salão/Se os duetos não se encontram mais/E os solos perderam emoção/Se acabou o gás/Pra cantar o mais simples refrão/Se a gente nota/Que uma só nota/Já nos esgota/O show perde a razão/Mas iremos achar o tom/Um acorde com um lindo som/E fazer com que fique bom/Outra vez, o nosso cantar/E a gente vai ser feliz/Olha nós outra vez no ar/O show tem que continuar/Nós iremos até Paris/Arrasar no Olímpia/O show tem que continuar/Olha o povo pedindo bis/Os ingressos vão se esgotar/O show tem que continuar/Todo mundo que hoje diz/Acabou, vai se admirar/Nosso amor vai continuar”.

Na discografia dela consta Beth Carvalho o samba de São Paulo, de 1993; e Beth Carvalho canta o samba da Bahia, de 2007. É indispensável, estimados leitores e leitoras da Vila de Utopia, o CD Nome sagrado, de 2001, em homenagem a Nelson Cavaquinho, com repertório exclusivo de sambas de seu compositor favorito, e tendo a participação de Zeca Pagodinho, Wilson das Neves e Guilherme de Brito, vendido em bancas de jornal, na época; e Beth Carvalho canta Cartola, de 2003, idealizado pelo jornalista Rodrigo Faour, fã da cantora, que era preferida do compositor Cartola. Discos imperativos e memoráveis à história da música brasileira.

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o concurso nacional de Poesias para Jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

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2 Comentários

  1. Alô, Carlos Cruz!
    É sempre um prazer imensurável reler antigas matérias na visita à Vila de Utopia, de quando em quando.
    Mantenha preservado o arquivo com carinho.
    Saúde!
    Lenin Novaes

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