As músicas de Adoniran Barbosa viram patrimônio cultural de São Paulo
Lenin Novaes*
O nosso personagem em foco, com destaque na música popular brasileira, estimados leitores e leitoras da Vila de Utopia, é o compositor e ator radiofônico João Rubinato, que ganhou reconhecimento e admiração nacional com o nome artístico de Adoniran Barbosa. João Rubinato nasceu em 6 de agosto de 1910, em Valinhos, São Paulo, e faleceu na capital paulista, em 23 de novembro de 1982, aos 72 anos. Era um dos sete filhos de Francesco Rubinato e Emma Ricchini, imigrantes italianos de Cavárzere, que desembarcaram na Cidade de Santos, em 15 de setembro de 1895, e foram trabalhar em lavoura. Tendo que ajudar os pais, ele deixou os estudos ainda no curso primário. Foi balconista, tecelão, garçom, entregador de marmitas, encanador e pintor de paredes. A mãe morreu em 1939 e, o pai, em 1943.
Adoniran se casou com Olga Krum, em 8 de dezembro de 1936, e com ela teve a única filha: Maria Helena Rubinato, que nasceu em 23 de setembro de 1937. O casal se desquitou em 1943 e a filha ficou com a irmã dele, Ainez Rubinato Salgado. O compositor se casou depois com Matilde de Lutis, com quem viveu até morrer.
Fui revisitar a obra de Adoniran Barbosa, óbvio, começando pelo samba “Saudosa maloca”, com uma das interpretações mais significativas na voz de Elis Regina, considerada a maior cantora brasileira. E, também com ela, “Tiro ao Álvaro”, dele com Osvaldo Molles, e “Iracema”. Na voz de Gal Costa, a gravação de “Trem das onze”, repetida com o grupo Demônios da Garoa, Zeca Pagodinho e no dueto Maria Gadú e Caetano Veloso.
Nas composições dele estão registradas crônicas paulistanas, em linguísticas sonoras que se contrapõem ao próprio samba. São retratados tipos com os quais convivemos dia-a-dia: meninos que ganham alguns trocados com pequenas caixas de engraxates, os despejados das favelas e moradores de rua, mulheres submissas, subempregados, homens solitários. As crônicas são tragicômicas e personificadas em pessoas desprovidas de cidadania, em um país que subtrai de seus cidadãos a dignidade.
Eis “Saudosa maloca”:
“Se o senhor não tá lembrado/Dá licença de contá/Que acá onde agora está/Esse adifício arto/Era uma casa veia/Um palacete assobradado/Foi aqui seu moço/Que eu, Mato Grosso e o Joca/Construímos nossa maloca/Mas um dia, nós nem pode se alembrá/Veio os homis c’as ferramentas/O dono mandô derrubá/Peguemos todas nossas coisas/E fumos pro meio da rua/Apreciá a demolição/Que tristeza que nós sentia/Cada táuba que caía/Doía no coração/Mato Grosso quis gritá/Mas em cima eu falei/Os homis tá cá razão/Nós arranja outro lugar/Só se conformemo quando o Joca falou/Deus dá o frio conforme o cobertor/E hoje nós pega páia nas gramas do jardim/E prá esquecê, nós cantemos assim/Saudosa maloca, maloca querida/Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossa vida/Saudosa maloca, maloca querida/Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas”.
A composição pode ser interpretada como uma crônica bem humorada, mas que revela um dos principais problemas essenciais à vida e que aflige a larga maioria da população brasileira: habitação. O assunto é frequente nos noticiários de emissoras de rádio e de TV e em jornais, passando por construção de barracos em áreas de risco nas grandes metrópoles, como no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Maranhão e Minas Gerais.
São Paulo registra, constantemente, incêndios de grande proporção em favelas e, no Rio de Janeiro, enxurrada de fortes chuvas derruba precárias casas de alvenaria nos morros e causa mortes. Visível o desnível econômico, social e cultural de milhares e milhares de pessoas habitando precárias moradias – se é que é politicamente correto chamar esse tipo de construção de moradia – em favelas em todas as partes do Brasil. Os desfavorecidos nesse país vivem ao Deus dará, em condições arriscadas nos morros e favelas sem esgoto, água potável, energia elétrica e ultrajados pela polícia, traficantes e milicianos.
Déficit habitacional
O déficit habitacional brasileiro, conforme estudos da Fundação João Pinheiro, datado de 2013, correspondia a 5,846 milhão de domicílios, o que representa 9,0% dos domicílios particulares permanentes e improvisados. Dentre as regiões com o maior déficit habitacional absoluto destacam-se o Sudeste e o Nordeste com, respectivamente, 2,246 e 1,844 milhão de moradias naquele ano. Em seguida estão as regiões Norte com 653 mil, a Sul com 628 mil, e a Centro-Oeste com 474 mil domicílios. Embora a maior concentração absoluta do déficit habitacional esteja localizada nas regiões Sudeste e Nordeste, o maior percentual do déficit relativo concentra-se na região Norte: 13,7%.
Entre as unidades da federação com maior déficit absoluto em 2013 destacavam-se: São Paulo (1,254 milhão), Minas Gerais (494 mil), Bahia (417 mil), Maranhão (408 mil) e Rio de Janeiro (399 mil). Além do elevado déficit absoluto, o estado do Maranhão tem o maior déficit relativo entre as unidades da federação – 22,1%. O déficit relativo também se mostra elevado nos estados do Amazonas (18,4%), Roraima (16,6%), Tocantins (13,3%), Pará (13,2%) e Acre (12,8%), todos da região Norte. Rio Grande do Sul, situado na região Sul, apresentou o menor déficit relativo – 5,4%.
Na composição do déficit habitacional brasileiro, em 2013, o ônus excessivo com aluguel é o item de maior peso, respondendo por 2,553 milhões de unidades ou 43,7% do déficit, seguido pela coabitação com 1,905 milhão de domicílios ou 32,6%, habitação precária com 997 mil unidades ou 17,1%, e adensamento excessivo em domicílios alugados com 390 mil domicílios ou 6,7% do total do déficit habitacional.
Entre as regiões, o ônus excessivo com aluguel atinge 56% na estrutura do déficit do Sudeste, 54,5 do Centro-Oeste e 47,3 do Sul. A coabitação apresenta a maior participação nas regiões Norte (43,2%) e Nordeste (33,4%). No Nordeste, o déficit distribui-se igualmente entre coabitação, ônus com aluguel e habitação precária; 33,4, 31,8 e 31%, respectivamente, com participação de apenas 3,8% do adensamento. No Sul, o adensamento é o menor componente (3,0%), assim como nas regiões Norte e Centro-Oeste, ambas com 6,5%. A parcela do adensamento no Sudeste corresponde 10,1% – a maior entre as regiões. A habitação precária tem distribuição bastante diferenciada entre as regiões. Representa 31,0% do déficit no Nordeste, 27,0 no Norte, 17,3 no Sul e 8,3 no Centro-Oeste. No Sudeste, é o item de menor peso na composição do déficit (4,5%).
Trem das onze
Retomando Adoniran Barbosa, o primeiro sucesso é uma de suas composições que se tornou clássico da música popular, “Trem das onze”, gravada pelo grupo Demônios da Garoa, em 1964. Aliás, ele próprio a gravara em 1951, ano no qual aquele grupo ganhou prêmio no Carnaval de São Paulo com o samba “Malvina”, de sua autoria. Quem ainda não cantou por inteiro a música “Trem das onze”, ficando no estribilho, certamente agora poderá fazê-lo, com a letra publicada abaixo.
“Quais, quais, quais/Quaiscalingudum/Quaiscalingudum/Quaiscalingudum/Não posso ficar/Nem mais um minuto com você/Sinto muito amor/Mas não pode ser/Moro em Jaçanã/Se eu perder esse trem/Que sai agora às onze horas/Só amanhã de manhã/Não posso ficar/Nem mais um minuto com você/Sinto muito amor/Mas não pode ser/Moro em Jaçanã/Se eu perder esse trem/Que sai agora às onze horas/Só amanhã de manhã/E além disso mulher/Tem outra coisa/Minha mãe não dorme/Enquanto eu não chegar/Sou filho único/Tenho minha casa pra olhar/Eu não posso ficar/Não posso ficar/Nem mais um minuto com você/Sinto muito amor/Mas não pode ser/Moro em Jaçanã/Se eu perder esse trem/Que sai agora às onze horas/Só amanhã”.
Em sua trajetória, João Rubinato, mesmo com voz fanha, buscou ser cantor. Pegou o nome de Adoniran de um amigo de boemia, Adoniran Alves e, o sobrenome Barbosa, do cantor de samba que admirava: Luiz Barbosa. Participou de vários programas de rádio para calouros, levando gongada. Cantou “Se você jurar”, de Ismael Silva e Nilton Bastos. Não deu em nada. Mas, com “Filosofia”, de Noel Rosa, emplacou e, daí, tirou a linha para construção de suas futuras composições.
Em 1935 compôs a primeira música, em parceria com o maestro Aimberê, “Dona boa”, considerada a melhor marcha do Carnaval de São Paulo. A música foi gravada por Raul Torres, na Columbia. Trabalhou na Rádio Cruzeiro do Sul até 1940, transferindo-se no ano seguinte para a Rádio Record, onde começou a carreira de ator radiofônico, na série Serões Domingueiros. Ele criou vários personagens, entre os quais Jean Rubinet, galã de cinema francês; e Zé Cunversa, um malandro.
Compor ignorando a grafia correta – também um dos recordistas em venda de livros, o escritor e compositor Paulo Coelho, não dá importância à gramática –, se tornou uma marca de Adoniran Barbosa, que rebatia as críticas dizendo que “só faço samba pro povo, por isso faço letras com erros de português, porque é assim que o povo fala”.
Naquela emissora de rádio ele conheceu o produtor Osvaldo Moles, criador dos textos dos personagens que interpretava. Trabalharam juntos por 26 anos e dividiram muitas parcerias de samba. Adoniran atuou em alguns filmes, como Pif-Paf, Caídos do Céu e O cangaceiro. E também em televisão, a partir de 1972, nos programas Ceará contra 007 e Papai sabe nada, na TV Record, e nas novelas Mulheres de areia e Os inocentes.
O disco solo gravou em 1974, tendo no repertório “Abrigo de vagabundos”, “As mariposas”, “Apaga o fogo, Mané”, “Trem das onze”, “Saudosa maloca” e “Iracema”; seguido de outro disco, no ano seguinte, com “No morro da casa verde”, “Vide verso meu endereço”, “Tocar na banda”, “Malvina”, “Não quero entrar”, “Samba italiano”, “Triste Margarida (samba do metrô)”, “Mulher, patrão e cachaça”, “Pafunça”, “Samba do Ernesto”, “Conselho de mulher” e “Joga a chave” e, em 1980, o último disco, em homenagem aos seus 70 anos, com a participação de Elis Regina, “Tiro ao Álvaro”, Clementina de Jesus e Carlinhos Vergueiro, “Torresmo à milanesa”, Gonzaguinha, “Despejo na favela”, Djavan, Clara Nunes e os grupos Talismã e MPB-4.
Eis a letra de “Tiro ao Álvaro”:
“De tanto levar frechada do teu olhar/Meu peito até parece sabe o quê?/Táubua de tiro ao Álvaro/Não tem mais onde furar/Táubua de tiro ao Álvaro/Não tem mais onde furar/Teu olhar mata mais do que bala de carabina/Que veneno e estriquinina/Que peixeira de baiano/Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver/Mata mais que bala de revórver”.
No Teatro 13 de Maio, no bairro paulista do Bexiga, em São Paulo, em 1977, se apresentou junto com os sambistas carioca Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e Carlos Cachaça. Em 2002 foram lançados os livros Adoniran, dá licença de contar, de autoria de Ayrton Mugnaini; Adoniran Barbosa – o poeta da cidade, de Francisco Rocha; e Adoniran – se o senhor num tá lembrado, de Flávio Moura e André Nigri. E em 2007 foi lançado DVD com a participação de Adoniran Barbosa no programa Ensaio, apresentado por Fernando Faro pela TV Educativa e gravado em 1972. Por ocasião da celebração do seu centenário de nascimento, em 2010, a gravadora lançou o CD Adoniran 100 anos, produzido por Thiago Marques Luiz e com direção musical de Rovilson Pascoal e André Bedurê. Participam os artistas Zélia Ducan, Arnaldo Antunes, Markinhos Moura, Maria Alcina, Vânia Bastos, Caubi Peixoto e o grupo Demônios da Garoa, entre outros.
Patrimônio de São Paulo
A obra de Adoniran Barbosa faz parte oficialmente do patrimônio cultural paulistano, incluindo as músicas “Trem das onze”, “Saudosa Maloca”, “Tiro ao Álvaro”, “Iracema” e “Samba do Arnesto”, conforme projeto de lei aprovado pela Câmara de Vereadores de São Paulo, que foi sancionado pelo então prefeito Fernando Haddad, ano passado. Pelo texto, a municipalidade passou a ser obrigada a garantir a preservação de toda a obra do artista, incluindo as composições e poesias.
O modo de falar e com pequenos erros gramaticais é uma das marcas da obra de Adoniran, conforme destaca a justificativa do projeto de lei. Em alguns casos, aparece em um jogo de palavras, como o apaixonado Álvaro, que também é um jogo de palavras com “alvo” em Tiro ao Álvaro. O personagem é o destino certo das frechadas (flechadas) disparadas pelo olhar da moça, mais mortíferas do que veneno estriquinina e bala de revorver. A partir dessa poesia, identificada com as camadas menos favorecidas da população, Adoniran contava histórias de eventos diários que, às vezes, chegavam à crítica social, como no despejo de “Saudosa Maloca”.
“Peguemos todas nossas coisas e fumo pro meio da rua, apreciá a demolição/ Que tristeza que nós sentia/Cada táubua que caía, doía no coração”, compôs Adoniran, dando voz aos sem-teto. Por esse tipo de sensibilidade, a lei ressalta que o compositor “retratou com maestria o cotidiano paulistano”, o que justifica a preservação de seu trabalho.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Picolino e o retrato catando da cidade de São Paulo e sua gente.