Aprender a voar

Padronagem de Athos Bulcão, na Igrejinha, em Brasília – Fundação Athos Bulcão/Divulgação.

Maria Julieta Drummond de Andrade

Um casal de pombos instalou-se em minha varanda. Assustada com o barulho e a sujeira que (disseram-me) esses pássaros costumam trazer consigo, ameaçando a tranquilidade e a higiene doméstica, tentei afugentá-los, mas os dois nem ligaram. Felizmente. Dias mais tarde, descobri um ovo grande e bonito, no arremedo de ninho. Ovo perfeito, tão singelo, puro, alvejando no canteiro esquerdo da varanda.

Parecia um milagre. Era um milagre. Eu talvez seja um pouco ingênua (admito), mas a presença daquele ovo enredou-me numa sensação indescritível, de plenitude e emoção. Um pombo e uma pomba tinham escolhido minha casa, o punhado de terra em que plantei uma palmeirinha e que pertence, portanto, à minha jurisdição, para dar prosseguimento ao ato de amor que executaram e aí depositar seu ovo e seu futuro.

Era como se, movidos por não sei que intuição subterrânea, os dois, em tácito acordo, tivessem decidido ofertar-me um presente especial, na certeza de que eu saberia recebê-lo e compreendê-lo. Vi-me bafejada pela sorte, eleita, enriquecida.

A cada momento eu chegava à varanda, na esperança de que o ovo estivesse à mostra, mas não era fácil divisá-lo sob as penas da pomba negra e do pombo malhado, que se revezavam permanentemente sobre o claro produto que tinham elaborado juntos, com a sabedoria imemorial que a natureza lhes inculcara.

Na manha seguinte: outro ovo! Nítido e exato como o primeiro e tão comovedor. Minha rotina passou a girar em torno daquele par de formas lindas: ora eu me aproximava, esfuziante e cautelosa, para esparramar farelos de pão e biscoito sobre o canteiro, ora – se os pombos se afastavam, com medo – afligia-me a possibilidade de que meu gesto pudesse ter sido brusco e os incomodasse, fazendo-os desistir da lenta empreitada que pretendiam levar a cabo. A força do instinto prevalecia, contudo, e um ou outro voltava depressa, ou os dois, para meu alívio e serenidade.

Os pombos e eu nos tornamos amigos. O desagrado inicial que minha presença lhes ocasionava cedeu pouco a pouco lugar a uma sorte de aceitação, que virou confiança, talvez afeto. Eu acordava e, antes mesmo de abrir a porta, à procura do jornal, ia direto à varanda, saudar meus inquilinos: nunca deixei de encontrar a pretinha, séria, enfunada, olhando para a frente, como figura de proa, ou o macho, mais esquivo – deitados em seu canto, sem pressa, obedientes, dando sequencia ao destino.

Pombo buddy, Anastassia Fulmer, dos EUA.

Quem se impacientava era eu: afinal os pombinhos iam ou não iam nascer? A cozinheira e o porteiro, consultados, riram da minha ignorância: isso é assim mesmo, toma tempo, não adianta afobação, os animais sabem o que fazem. E daí, se dois ovos de pombo gorassem numa varanda de Ipanema, que importância teria um fato assim banal? Há tanto pombo no Rio e no mundo… Eu devia até levantar as mãos para o céu, se os filhos fracassassem: menos confusão, menos piolho, menos titica entre plantas. Pombo é bicho danado, pega o costume e volta a toda a hora, a senhora vai ver.

Pelo telefone recorri a um biólogo, que me acalmou: são catorze dias de choco, às vezes um pouco mais, se os pais abandonam o ninho com frequência. O remorso me consumia: de tanto querer alimentá-los, eu talvez tivesse interrompido o processo e perturbado a ordem das coisas. Continuei atenta, mas de longe, o coração intranquilo, a alma aos pulos, controlando os minutos, como num relógio de areia.

Ate que, no fim de semana, quando se esgotavam o tempo previsto e minha capacidade de espera, percebi algo meio creme, agitando-se quase imperceptivelmente sob o bojo escuro da pomba. Ela permanecia imóvel, panda, grave, e erguera apenas de leve uma das asas, debaixo da qual adivinhei, mais do que vi, a metade de um ovo acabando de romper-se.

O macho pousara junto à fêmea, com o mesmo ar imperial dos dias anteriores. Só que, naquele instante, cada um à sua maneira, ele e eu assistimos a uma cerimonia básica da criação: o nascimento de um pombinho. Longamente me mantive de cócoras na varanda, presenciando o mistério, em silêncio. Nada mais aconteceu. O malhado, fixo; a pretinha, solene, ambos com os olhos presos no nada.

Não podendo conter minha curiosidade, ao entardecer animei-me a dirigir à parturiente palavras menos sussurrantes do que as que geralmente eu empregava com ela:

– Por favor, querida madame, deixe-me conhecer seu primogênito.

Ela, nada. Insisti:

– Um momentinho só. Gostaria tanto de ser apresentada ao recém-nascido…

A pomba entendeu, voou e me permitiu contemplar o borracho mais feio que se possa imaginar: mole, informe, de um amarelo sujo e sem viço. A ligeira palpitação que captei em sua pele meio transparente, porém, metamorfoseou-o, para mim, num ser de estranha formosura. Logo depois o pai, como um raio, surgiu do edifício em frente e veio cobrir o filhote.

O segundo ovo gorou. Não fiquei triste: a vida tem seus critérios de escolha e não convém exigir dela mais do que o essencial.

E por que é que eu haveria de me queixar se, junto ao ovo não fecundado, o borracho ia crescendo a olhos vistos, tomando jeito de pássaro, com suas peninhas incipientes, em duas tonalidades cinza, apontando sobre o esboço de asas, um bico enorme e preto, que não guardava relação com o resto do corpo, os olhos bem abertos, e ensaiando até movimentos próprios, girando sobre si mesmo, esforçadamente, no ninho?

O pai e a mãe continuavam se revezando sobre ele, embora começassem a dar-lhe as primeiras noções de liberdade, deixando-o sozinho de vez em quando.

Sem saber se era macho ou fêmea, um amigo batizou o queridinho de Professor, em virtude do ar sério e empertigado que ele assumiu, desde que deu para caminhar, até com certa habilidade, de um lado para o outro do canteiro. De inicio o processo foi lento, quase penoso. Que susto, ao não encontrá-lo, há dias, na pontinha onde nasceu e da qual nunca se afastava: cadê o filhote?

Fui descobri-lo, com cara de medo, debaixo da folha maior da palmeira: o danadinho empreendera a primeira aventura e se encolhia, mais inseguro que orgulhoso. Na tarde seguinte apareceu um pouco mais longe: senti claramente que se aproximava da adolescência.

Felicitei-o com efusão e tive certeza de que ele me agradecia, mas preferi não aumentar as rações. Só me preocupava a ausência dos pombos mais velhos, que de repente sumiram, como se considerassem finda a missão procriadora.

A pena que eu sentia diante daquele bichinho ainda feioso, vacilante e órfão, exposto à chuva e à ventania: se ao menos eu pudesse arranjar-lhe um cobertozinho, um agasalho qualquer…

Achei melhor, entretanto, não intervir e deixar o pombo enfrentar por conta própria o destino que lhe tocara. Para que complicar as coisas, se tudo parecia obedecer a um método sutil, que eu ignorava, e se o Professor, de temperamento doce, quase não piava, reclamando?

Duas Pombas Tartaruga, Julia Ogden, da Inglaterra

Foi então que, para satisfação minha, os pais regressaram, só que de modo diverso: já não chegavam separados, dividindo as obrigações e o lazer, como indica o Eclesiaste.  Agora estão  juntos e passam a maior parte do tempo perto do filho, que costuma apoiar com mais confiança nas plumas paternas, enquanto a mãe, firme sobre os pezinhos alaranjados, vigia. Não entendi logo a razão daquele súbito amor grupal, mas achei tocante ver a família reunida, tão calma e segura de si mesma.

Finalmente matei a charada: está na hora de o Professor se tornar independente, e pombo e pomba voltaram ao ninho a fim de ensiná-lo a voar. Os três ficam parados, o pai de um lado, a mãe do outro, tentando passar para o filho, no meio, as lições profundas que herdaram dos ancestrais.

Pensam, se encontram, transmitem; o moço capta, recebe, incorpora. De vez em quando a mãe dá um giro no ar, volta; depois é o pai que executa idêntico arabesco. Aí o discípulo empina o peito e, meio estabanado, rufla as asas e prova um movimento, como se pretendesse atirar-se ao espaço; detém-se. Os pais assistem a tudo imperturbáveis; recomeçam.

O Professor está aprendendo a voar. Sei que brevemente numa dessas manhãs não o encontrarei no canteiro, onde é bom observá-lo e amá-lo. Ele se lançará às nuvens e partirá, em busca do seu caminho de adulto – preparado, vencedor, solitário.

Está completando a última aprendizagem básica: depois disso seus pais o deixarão livre e ele terá que reinventar a vida e os mistérios que o aguardam. Claro que vou ficar triste: a que pequeno ser emplumado darei boas-vindas?

A que interlocutor sutil contarei minhas fantasias? Resta-me o sonho de que meu amigo pombo conservará em sua cabecinha vibrátil fragmentos de memória que lhe permitam regressar algum dia ao lugar onde nasceu e onde eu o estarei esperando.

No momento em que escrevo, um barulhinho na porta do escritório me interrompe: é o Professor que, pela primeira vez, conseguiu pular do canteiro para a varanda e me olha de banda, surpreendidíssimo. Não tenho dúvida de que o pequeno pombo e eu estreamos um diálogo, que é só nosso.

[Livro: Gatos e Pombos. Maria Juliet Drummond de Andrade. RJ: Editora Guanabara, 1986 – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

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