Aprenda com quantos paus se faz uma canoa e siga pela terceira margem do rio
Canoas de Caraíva, BA, aguardam quem quer seguir pela terceira margem do rio
Fotos: Acervo Carlos Cruz
Ana Cristina Ribeiro Fraga*
Na beira do rio, o velho Zé olhava a correnteza como quem lê um livro antigo. O sol já se despedia atrás das montanhas, e o cheiro de madeira molhada subia do barranco.
Ao lado dele, um garoto curioso, desses que ainda acham que o mundo é feito de respostas fáceis, perguntou:
“Seu Zé, com quantos paus se faz uma canoa?”
O velho sorriu com os olhos, como quem já ouviu essa pergunta mil vezes, mas nunca se cansa de responder. “Depende”, disse ele, “se for pra navegar, basta um. Mas se for pra viver, aí são muitos.”
O menino franziu a testa, sem entender. E é aí que mora a beleza da expressão. Porque “com quantos paus se faz uma canoa” não é só sobre madeira – é sobre experiência.
É sobre saber que nem tudo se aprende nos livros, e que há coisas que só o tempo, a queda e o rio ensinam.
A canoa, no fundo, é metáfora da vida. Quem nunca tentou navegar sem saber onde é o fundo raso? Quem nunca achou que bastava força no remo, sem perceber que o segredo está na correnteza?

Na cidade, a frase virou provocação. Dizem isso quando querem testar alguém, medir a esperteza, ou simplesmente lembrar que o mundo não é feito só de boas intenções. “Esse aí não sabe com quantos paus se faz uma canoa”. E pronto, está decretado: falta-lhe vivência, falta-lhe malícia, falta-lhe rio.
Mas no interior, onde o tempo corre mais devagar e as palavras têm cheiro de terra, a expressão ainda carrega respeito. Saber com quantos paus se faz uma canoa é saber da vida. É ter remado contra a maré, desviado de tronco, enfrentado enchente. É ter feito da madeira abrigo, transporte e esperança.
Seu Zé, com seus calos e silêncios, sabia disso. E o menino, mesmo sem entender tudo, guardou a resposta como quem guarda uma semente. Um dia, quando o rio da vida lhe pedir uma canoa, talvez ele lembre: não é só o número de paus que importa. É saber onde cortar, como encaixar, e principalmente — pra onde remar pela terceira margem do rio.
*Ana Cristina Ribeiro Fraga é escritora bissexta e adora curtir a natureza.