Amarante,  o “Cavallaro” itabirano endiabrado que tocava flauta  

Cristina Silveira

[Para o Genin]

Luís Camilo de Oliveira Neto, o historiador sem livro, numa frase lapidar dizia, “itabirano não fica doido, declara-se” ao que acrescento, se não declarar vai voando pra Barbacena ou embrenha na picada aberta por Garcia Rodrigues Paes até a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro.

Parece ser o caso do artista plástico José Amarante de Oliveira, o Victor Meirelles e definitivamente o Cavallaro; o lúcido fora da lei e da ordem dos normais.

A Vila de Utopia recuperou da hemeroteca da BN-Rio dois artigos com pequenos relatos da vida e obra de Amarante, transcritos do Jornal de Itabira e das revistas, O Malho e A Ilustração Brasileira/Rio.

Artista plástico itabirano que a cidade desconhece (Fotos: acervo Cristina Silveira

Não se tem aqui, a data de nascimento e morte de Amarante, mas pela idade de contemporâneos seus, no Liceu de Artes e Ofício (1856-1900) e na Enba-Escola Nacional de Belas Artes (1890), pode ser ele da geração de 70, do ano de 1800.

Talvez estivesse no hospício em 1923, quando o Leiloeiro Gusmão anunciava no Correio da Manhã, importante leilão de artes assinadas por artistas “reputados” como Cavallaro e Rodolpho Amoedo.

Parece, mas pode não ser que estivesse morto em 1924, quando o crítico de arte Ercole Cremona, denuncia na revista O Malho “a apropriação criminosa de um quadro seu. [….], o Rafael havia colocado sobre uma cadeira a pequena tela; com surpresa vimos um esboço muito bem tocado, com sérias qualidades de composição e cor, era realmente um magnifico trabalho, mas também não pertencia ao tal fanfarrão!  O pequeno trabalho era uma das maravilhosas composições de José Amarante de Oliveira, velhacamente furtado pelo tipo.”

No Beco das Belas Artes, talvez tenha cruzado com um outro do Matto Dentro, filho do Serro, Belmiro Barbosa de Almeida (1858-1935), grande pintor e caricaturista, autor da estátua Manequinho, instalada em frente à sede do Clube Botafogo/Rio.

Em 1904, sua obra é selecionada para participar da Feira Universal de St. Louis, nos EUA. A Feira foi um evento que impressionou o mundo pela variedade de produtos de manufatura, minérios, agricultura e arte.

O mundo olhou pro Brasil. Terminada a Feira o pavilhão brasileiro foi doado ao Brasil e instalado no Rio com o nome de Palácio Monroe (senadinho), demolido em 1976.

Em 1908 Cavallaro é premiado na Exposição Geral de Belas Artes, da Enba. No mesmo ano é selecionado para representar Minas Gerais em seu pavilhão (desenhado pelo presidente Afonso Penna) na “Exposição de 1908 ou o Brasil visto por dentro”, comemorativa do centenário da Abertura dos Portos, na Urca/Rio.

Segundo Ecrole, Amarante não participou, de todo modo seu nome foi selecionado com outros artistas mineiros, como o publicado no Almanak Laemmert.

Amarante viveu no Rio no final do século XIX, momento de consolidação da ruptura do pacto colonial no segundo Reinado, através da Reforma Pedreira (1854-57) programa de modernização do Império para alinhar o país as nações ditas civilizadas.

O programa Pedreira promoveu a mais profunda reforma na Aiba durante o Império e foi essencial no processo de construção do “imaginário popular” e de urbanização da nação.

A despeito da vida breve Amarante, aluno do Núcleo Bernardelli fez parte de um movimento de Modernos dentro da Enba em oposição ao grupo Positivista.

Figuras do Passado

Por João Gonçalves
Pavilhão de entrada da Exposição Nacional de 1908

Um artigo de memória publicado na coluna Figuras do Passado, no Jornal de Itabira, edição de 18/11/1933, reporta a presença dos irmãos pelo sangue e pelo talento Alexandre e José Amarante de Oliveira.

Alexandre era poeta, autor de Penha, “…um hino olímpico à fonte natural de banhos públicos da Penha, hoje populoso bairro da cidade.”

“Penha. Nasce na pedra e canta entre myrtaes, /Num leito de ouro e malacacheta. /Lembra a lympha da lenda, alma faceta; […] aconchegar ao peito a água lustral da incomparável Penha”.

Quando faleceu foi saudado pelo poeta Drummond na crônica, “Um poeta morto”, publicada no Jornal de Minas em 22/4/1920.

Em 1801 fundamos o Grêmio Tiradentes, o primeiro em Itabira instruído por jovens impúberes. Amarante propôs nos eculpir o busto do seu patrono. Exultamos. Mas impunha a condição de que fornecessemos o material. E que jamais lhe perguntasse pela confecção da obra.

[…]com apupos e objurgatórias patrioticas e tremebundas á memoria dos governos de Portugal. Mas, subito, o Amarante, recolhido até então num mutismo impassivel, empunhando um pedaço de taboa de caixão, levanta bruscamente a madeira e sem que lhe compreendessemos o gesto inopinado, com um golpe fulminante decepa a cabeça do Tiradentes!…

O fatal craneo rolara quintal a baixo, dando saltos sinistros, esquartejando-se nas arestas do solo empedrado, até esfarinhar-se por fim em poeira branca de tabatinga! Ficamos desolados. Mas regosijaram-se certamente os nomes de Maria I, do Vice Rei, de Barbacena e Silvério!

O supliciado do despotismo politico porque sonhara a grandeza da Patria, outra vez o suplicado do despotismo artístico de Amarante! É que mal presumiamos que a decapitação da efigie era expressivo sintoma de tôrva insania que havia de matar. Porque a loucura comburindo-lhe o cerebro, nem lhe apagará a centelha da inspiração. Morreu no Hospital Nacional de Alienados”.

Belas Artes

O pintor José Amarante de Oliveira

Por Ercole Cremona*

Há vinte anos, pelas aulas do Liceu de Artes e Ofícios corria um frêmito de admiração entre rapazes que as frequentavam. Essa admiração era motivada pela maneira extraordinária com que um estudante resolvia os modelos, por mais difícil que fossem.

José Amarante de Oliveira era o nome do estudante. Foi discípulo em primeiro lugar de Stefano Cavallaro, um tipo de italiano rude, de pequena estatura; os seus conhecimentos em matéria de desenho não iam além da oleografia e José Amarante passou para o professor de sólidos geométricos e em seguida para a classe de figuras, regida por Sebastião, patenteando sempre uma aptidão extraordinária para as belas artes.

Copiou um retrato de Victor Meirelles (1832-1903) existente na sala de aula, em homenagem ao grande artista e amigo professor da classe; tal trabalho valeu-lhe a alcunha de “Victor Meirelles”, nome por que era conhecido até a sua entrada para a Escola de Belas Artes em 1904.

Nos concursos finais o seu nome brilhou sempre, conquistando o primeiro lugar. Na Escola de Belas Artes foi discípulo de João Zeferino da Costa, Henrique Bernardelli e, mais tarde, de Eliseu Visconti. A sua aptidão continuou a ser apreciada, principalmente nos concursos de esquisses; em tais trabalhos revelava ser um talento fora do comum, um compositor seguro.

As linhas das suas composições tinham um sabor novo, completamente fora dos moldes acadêmicos; eram atrevidas, arrojadas mesmo, merecendo dos mestres e colegas as melhores referencias.

Por essa época, justamente desvanecido, andava o professor Stefano com os sucessos do seu antigo discípulo; em toda a parte por onde andava, a sua única e dominante preocupação era fazer alarde dos acontecimentos; não se cansava de repetir que tinha sido ele a ensinar o A.B.C do desenho a José Amarante.

As lodes em torno do valor do antigo discípulo chegaram a um exagero tal, que colegas de Amarante resolveram solenemente crismá-lo com a alcunha de Cavallaro; o apelido de Victor Meirelles desapareceu como por encanto. Amarante ficou, para sempre e para todos os efeitos, sendo o Cavallaro.

Era José Amarante dotado de um temperamento boêmio, de cômico irresistível e alegria comunicativa; invariavelmente fumava charutos bichados sob a alegação de que eram melhores. A verdade, porém, era muito outra: amigo do gerente da casa Leite & Alves, arranjava-os de graça; os charutos tinham tantos buracos, que se tornava mister ocupar todos os dedos para tapá-los, o que José Amarante fazia , mesmo estando num bonde, café ou visita.

De pequena estatura, gordo, vestuário sempre desleixado; o colete tinha sempre uma casa desocupada e um botão a mais. Usava umas cartolinhas – saldos de 2$500 – menores do que a cabeça e que, invariavelmente esquecia nos cafés e cervejarias.

Teve Amarante um grande amigo, o saudoso comendador Júlio César de Oliveira, antigo presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro (1809); a amizade por José Amarante levou-o a nomeá-lo porteiro da Associação (unicamente em nome), facilitando-lhe todas as vantagens e um magnifico atelier nos altos da mesma Associação.

Era músico, poeta, escrevia para teatro; as suas comédias eram de um humor encantador. Outra curiosidade, no descanso dos modelos Amarante tocava flauta…

Na classe de Henrique Bernardelli, o ambiente era agradável. Era comum os alunos irem em sua companhia para o campo e para as praias, onde a par de estudos realizavam convescotes. Entre esses, ocupava sempre o primeiro lugar o Manna, um tipo curioso a Mürger, de chapéu à banda e guloso a ponto de comer o miolo das frutas que serviam de modelo, deixando-lhes as cascas pacientemente armadas no mesmo lugar, com grade desespero de Arthur Timotheo, eterno rabugento, que possuía uma caixa de tintas formidáveis, comprada num saldo do Cavalier, já bichada e maior do que a sua figura.

Timóeo da Costa, amigo e colega de Amarante, artista plástico e decorador

Com Francisco Manna fazia boa pena o José Amarante, o “Cavallaro” da Escola, atarracado, de cartolinha menor do que a cabeça, e charuto bichado, com tantos buracos que os dez dedos não bastavam para tapa-los: era nas horas vagas o porteiro da Associação Comercial. Apesar da grotesca figura, foi o maior talento que passou pela Escola no seu tempo.

Era músico, poeta e… mineiro de Itabira do Matto Dentro. Era enfim uma completa organização artística, infelizmente desaparecida da roda por loucura furiosa que o levou ao Hospício.

Quando Henrique Bernardelli deixou a Escola passou a frequentar a classe de Eliseu Visconti, lucrando de maneira extraordinária, principalmente sob o ponto de vista da composição.

Precisamente naquela época executou as composições Funerais de Cleópatra e Entrada de Cristo em Jerusalém, que mais tarde executou em ponto grande com muito talento.

Em Funerais de Cleópatra, Amarante revelou-se um artista perfeito, cheio de emoção e originalidade; em Entrada de Cristo em Jerusalém revelou-se um colorista fino, cheio de imprevistos e condições estéticas, atitudes prenhes de grandes qualidades e muita sinceridade.

O toque era preciso e o corte simpático. No quadro, de forma retangular, via-se a figura de Cristo, imponente, entre as palmas e flores; pelo chão matos coloridos, tapizando a estrada por onde deveria passar o jerico conduzindo o Redentor. As expressões eram resolvidas com saber e psicologia, o desenho movimentando, a cor perfeitamente jogada e contrastada; as nuances e as meias tintas eram pincelados com alma e os planos, que se sucediam, de uma perspectiva sóbria, rigorosamente compreendida.

No conjunto do quadro espelhava-se, nítida, sem estorvos, uma individualidade caracterizada de artista, de esteta equilibrado, uma alma emotiva e uma receptividade notável. Foi o quadro em questão, infelizmente, a única obra levada a efeito pelo artista em tamanho desenvolvido; media pouco mais ou menos um metro e cinquenta por noventa centímetros.

Tal trabalho nunca foi exposto ao público; unicamente os íntimos do pintor puderam vê-lo na sua grande beleza; precisamente quando pretendia enviá-lo ao Salão de Belas Artes em 1908, uma enfermidade grave o atacou traiçoeiramente, inutilizando tão formoso talento, o maior talento aparecido entre 1903 e 1909.

José Amarante de Oliveira foi também marinhista forte, com condições de técnica bastante desenvolvidas, condições que autorizavam a julgá-lo o substituto de Castagnetto (1851-1900); a natureza morta, a paisagem e o desenho a pena, ele mostrou conhecer com segurança, deixando um regular número de trabalhos que se acham em poder de amigos e admiradores. Em todas as suas produções via-se a mesma emotividade variada, o mesmo sentimento rutilante.

Público no teatro Recreio, no Rio de Janeiro

Pintor de valor, praticou um pouco a escultura com talento e grande dose de emoção. Das obras executadas, Beijo de Judas foi a que mais impressionou; as condições plásticas, o modelado enérgico e a maneira de grupar, davam a impressão de um escultor experimentado. Representava o trabalho duas cabeças: Cristo e Judas; a expressão era forte, sentida com energia; esteve o trabalho durante algum tempo em exposição na extinta Galaria Rembrandt, provocando os mais encomiásticos comentários. Nos seus últimos trabalhos começava-se a perceber um nervosismo estranho, mais tarde perfeitamente explicado pela moléstia que o dominou. Atos esquisitos ele praticava, mas que eram levados em conta do seu espírito folgazão…

Foi discípulo de Henrique Bernardelli, Elyseu Visconti e João Zeferino Costa.

Certa vez, adquiriu um velho trombone de vara, levando-o cuidadosamente para o sótão que ocupava em nossa residência à rua do Hospício (sic. atual Buenos Aires) – em frente à antiga casa Cadete.

Alta madrugada, quando reinava o maior silêncio, José Amarante levanta-se e, pachorramente, começa a executar uma cançoneta em voga do Cá e Lá, revista que então era representada no teatro Recreio! Fácil é calcular os efeitos de semelhante conceito e deshoras, em casa fechada onde todos dormiam…

Um característico em José Amarante era não usar sistematicamente caixa de tintas; todo material de trabalho ele trazia nos bolsos: espátulas, pinceis, tubos de tinta etc., etc. Quando ia pintar no campo e precisava voltar para terminar o trabalho embrulhava todo o material em um jornal e enterrava-o no meio da relva, como se tal proceder fosse a coisa mais natural do mundo!

Na classe do velho Zeferino era um prazer vê-lo discutir com o mestre, sempre paciente para com ele. Nunca entregou um desenho terminado no fim das semanas, como era do regulamento. Os seus estudos eram transformados em composições as mais bizarras, a ponto de desarmar o bom velho Zeferino, tão severo para com os demais discípulos…

A última pilheria que fez na velha Escola foi notável, de um cômico irresistível. Posava na aula de modelo-vivo – 1908 – um velho modelo, tipo interessante de napolitano, de corpo encarquilhado, longas barbas brancas e brincos nas orelhas; chamava-se Javary e era o decano dos modelos; muito amigo dos estudantes, fazia tudo que lhes pediam.

Amarante, tirando partido dessa circunstância, resolveu fazer uma pilheria com o bondosos mestre Zeferino da Costa, aproveitando a posição do modelo, que posava segurando um cajado e a outra mão sobre os olhos, à guisa de pala.

Pavilhão da Exposição de 1908

Em um dos repousos, José Amarante convenceu o velho Javary que podia posar de botas, umas botas pré-históricas, de elásticos já relaxados pelo uso de muitos anos e alças escancaradas; na ponta do cajado amarrou uma velha lanterna com um toquinho de vela acesso, e em seguida foi colocar-se na sua bancada, com a maior calma do mundo.

Não tardou a chegada do mestre Zeferino que, ao deparar com o modelo nú, de tanga, em semelhante atitude fez o consequente barulho, e à viva força queria saber qual o autor da “falta de respeito”.

Amarante, vendo que as coisas tomavam um aspecto pouco agradável, dirige-se ao mestre, e, com calma espantosa, diz: “Não se impressione, professor, aquilo representa Diógenes à procura de alguém que desenhe com linha nítida… como quem escreve…” .

O bom velhinho sentiu-se desarmado, riu gostosamente e começou a contar as suas pilherias de moço: Quando eu estava em Roma… e lá vinha à baila a história da “Caridade”, invariavelmente entre lágrimas…

Pois bem, esse temperamento de verdadeiro artista que José Amarante de Oliveira enlouqueceu, desapareceu deixando a sua obra desconhecida e muitas saudades em todos que o conheceram e apreciaram o seu talento, o maior talento do seu tempo. Nunca mais se falou no seu nome; talvez tenha morrido, ou então ande arrastando a sua loucura entre os seus na pitoresca Itabira do Matto Dentro, de onde era filho e que ele amava tanto.”

*[O Malho, 14/1/1922]

 

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5 Comentários

  1. Reportagem de excelência incrível, Cristina e Carlinhos! Acorde, Itabira, para valores tão raros, feito este e tantos outros, que as autoridades locais deixam submersos em um desprezo sem adjetivo, um tiro no próprio calcanhar do município. Envergonho-me por nunca haver sonhado com o nome deste artista aqui citado! Ave, Amarante, nós te saudamos!

    1. Cara Joana, hoje pensei em você, dado que tenho um acervo da hemeroteca da BN-Rio e não sou capaz de transformá-los em artigos para a Vila. Pensei em você porque transformaria essas notícias em artigos para a história.

  2. Que artigo surpreendente, mais um itabiruta que eu não conhecia, pena não ter registro das suas pinturas. Obrigado, Cristina Silveira, pela pesquisa e pela dedicatória. Um grande beijo.

    Genin

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