Alguma receita de felicidade?
Ilustração: Shamsia Hassani, do Irã
Carlos Drummond de Andrade
Ora, dá-se que o jovem casal completou 36 anos de união, e eu resolvi entrevistá-lo para o rádio. Quem sabe se os dois teriam alguma receita de felicidade? Levei um questionário indiscreto. Primeira pergunta:
– Como é que vocês conseguiram passar tanto tempo juntos? Os dois, a uma vez:
– Não foi tanto assim. Um terço (12 anos), dormindo oito horas por dia.
– Mesmo assim, meus caros!
Ela esclareceu:
– Havia o trabalho dele, que nos separava a maior parte do dia.
– E ela passou a maior parte da vida no cabelereiro – completou ele.
Eu: – Cabeleireiro, trabalho e sono: será isso vida em comum?
– Não, disse ela sorrindo. Há os intervalos.
– De qualquer maneira, 41 anos! É um latifúndio.
Ela: – Bem, brigamos o necessário. Está satisfeito agora?
Eu: – Ainda não. Brigas feias, dessas de atrair vizinhos?
Ele respondeu: – Como quer você que uma briga seja bonita? Brigamos como foi possível. Confesso que a iniciativa geralmente era minha. Ela, porém, provocava sempre.
– Ele trazia os motivos da rua, às vezes bem visíveis – informou ela.
– Outras vezes os motivos vinham da cozinha – emendou ele.
Homem gosta de variar, pelo menos de sobremesa.
– Mas depois das brigas… insinuei.
– Sim, era bom – admitiram ambos.
E cada um por sua vez:
– Nos primeiros tempos, ele punha bilhetes debaixo do travesseiro, pedindo perdão. Tenho um arquivo.
– Ela, de desgosto, jejuava. Gostando tanto de bife! Ficaram recordando.
– Ele mentia muito.
– Ela me chamava de mentiroso justamente quando eu falava verdade.
– Ele era impaciente.
– Ela tinha ódio de me ver. Embora sentindo pena, e querendo ajudar, virava onça.
– Eu também não podia adoecer, os cuidados dela eram excessivos. Doente precisa de paz.
Algum dia, no íntimo, você pensou em matar sua mulher: – arrisquei.
– Mais ou menos. Quando ela comprou um tapete horroroso.
– E você já pensou em envenenar seu marido?
– Nunca. Mas tinha medo de que outra mulher o fizesse.
– Vocês discutiam por causa de dinheiro? Ele, satisfeito: – o dinheiro não dava para isso.
Ela: – Não posso me queixar. Ele nunca me negou nada.
– Ela teve a esperteza de nunca me pedir nada que eu não pudesse dar.
Que foi que preservou o lar de vocês, nos momentos difíceis?
Ela: – O tricô, – que apura as virtudes femininas, e o hábito.
Ele: – A poltrona, o cãozinho, o hábito.
Eu: – Só isso?
Os dois: – E tudo mais.
– Quanto tempo leva para um se acostumar ao outro?
Ele: – Uma semana. Mas durante os primeiros vinte anos, uma vez ou outra, a gente se estranha ao acordar. E isto salva da rotina.
– Qual, o papel dos filhos no casamento?
Ele: – Educar os pais. Poucos o conseguem.
– Vocês se educaram?
Ele: – Não. Continuamos a achar nossa filha mais moça do que nós. A verdade é que, nascendo depois, ela sabe muito mais. Os pais são rebeldes ao ensino.
Ela: – Ele é sofisticado. No fundo, uma coruja como os outros.
– Qual foi o presente de aniversário que ele deu a você?
– Um colar de perolas barrocas.
Ele: – Para me fazer lembrado. Ela diz que sou uma perola – mas barroca, isto é, imperfeita.
Ela: – E eu dei a ele um barbeador elétrico. Para lembrar que marido não deve ficar com a barba crescida quando sai de casa.
– Vocês se casariam de novo?
Como resposta, beijaram-se. Não aprendi nenhum segredo, mas afinal o segredo de todos os casais antigos deve ser mesmo esse.
(Quadrante – Grandes cronistas do Brasil, escrevem especialmente para os ouvintes ra 800Kcls. A crônica acima foi lida ao vivo na Rádio MEC da PRA-2, tendo sido cedida com exclusividade para publicação na Revista Leitura, 1961. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira)