Alcione, cantora que o samba adotou,soma sucessos às vésperas de 70 anos

Lenin Novaes*

A cantora maranhense Alcione, adotada pelo samba, corresponde em bom nível ao gênero musical que a projetou na carreira artística. Na voz dela estão consagrados O surdo e Morte de um poeta, Totonho e Paulinho Resende; Lá vem você, Totonho, Paulinho Resende e Zayrinha; Pandeiro é meu nome, Venâncio e Chico da Silva; Sufoco, Chico da Silva e Antonio José; Gostoso veneno, Wilson Moreira e Nei Lopes; Dia de graça e Pintura sem arte, Candeia; Menino sem juízo, Paulinho Resende e Chico Roque; Não deixe o samba morrer, Edson Conceição e Aluísio; E vamos à luta, Gonzaguinha; A luz do vencedor, Candeia e Luiz Carlos da Vila; Roda ciranda, Martinho da Vila; e Mangueira, estação primeira, Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. A música E vamos à luta tem recado direto e permanente. Afinal, é de Gonzaguinha.

“Eu acredito é na rapaziada/Que segue em frente e segura o rojão/Eu ponho fé é na fé da moçada/Que não foge da fera e enfrenta o leão/Eu vou à luta é com essa juventude/Que não corre da raia a troco de nada/Eu vou no bloco dessa mocidade/Que não tá na saudade e constrói a manhã desejada/Aquele sabe que é mesmo o coro da gente/E segura a batida da vida, o ano inteiro/Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro/E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro/Aquele que sai da batalha entra no botequim/Desce uma cerva gelada/E agita na mesa uma batucada/Aquele que manda um pagode/E sacode a poeira suada da luta/E faz a brincadeira pois o resto é besteira/E nós estamos por aí”.

Alcione completa 70 anos acumulando sucessos (Fotos: Divulgação)

Alcione Dias Nazareth, que completa 70 anos em novembro, nasceu em 21de novembro de 1947, em São Luís, capital do Maranhão. É a quarta dos nove filhos do casal João Carlos Dias Nazareth e Filipa Teles Rodrigues. Ela tem outros nove irmãos, consequência da relação do pai, maestro de banda da Polícia Militar, com outras mulheres. Aprendeu a tocar clarinete a partir dos nove anos e, na mesma idade, a cantar em festas de familiares e amigos.

Três anos depois cantou na Orquestra Jazz Guarani, regida pelo pai, cantando o fado Ai, mouraria e Pombinha branca. Aos 18 anos se formou em professora primária e lecionou por dois anos, sendo demitida ao ensinar os alunos a tocar instrumento musical de sopro. Aí, por meio de sorteio, se apresentou na TV maranhense, onde se fixou por alguns anos na década de 1960, também cantando em boates e bares em cidades do Maranhão.

No Rio de Janeiro, a partir de 1968, trabalhou em loja de discos. Por meio do amigo e cantor Everardo, cantou em algumas boates em Copacabana. Venceu duas eliminatórias do programa de televisão A grande chance, apresentado por Flávio Cavalcanti. Mas, assinou contrato na TV Excelsior, se apresentando no programa Sendas do Sucesso. Seis meses depois fez turnê por alguns países da América Latina. O cantor Jair Rodrigues a apresentou à direção da gravadora Polygram, gravando compacto com Figa de guiné, de Reginaldo Bessa e Nei Lopes, e O sonho acabou, de Gilberto Gil, em 1972. Ano seguinte gravou outro compacto com sambas-enredo da Mangueira, São Carlos, Padre Miguel e Salgueiro.

A voz do samba é titulo do primeiro disco de Alcione, de 1974. No repertório, a presença de mestre Candeia com História de pescador e Batuque feiticeiro. Mas foram os sambas O surdo e Não deixe o samba morrer, quase que obrigatórios nos shows da cantora, que despontaram para o sucesso. Eis as letras, respectivamente:

“Amigo, que ironia desta vida/Você chora na avenida/Pro meu povo se alegrar/Eu bato forte em você e aqui dentro do peito uma dor/Me destrói/Mas você me entende e diz que pancada de amor não dói/Meu surdo, parece absurdo/Mas você me escuta bem mais que os amigos lá do bar/Não deixa que a dor mais lhe machuque/Pois pelo seu batuque eu dou fim ao meu pranto e começo a cantar/Meu surdo bato forte no seu couro/Só escuto este teu choro/Que os aplausos vêm pra consolar/Meu surdo, velho amigo e companheiro/Da avenida e de terreiro/De rodas de samba e de solidão/Não deixe que eu vencido de cansaço/Me descuide desse abraço/E desfaça o compasso do passo do meu coração”.

“Não deixe o samba morrer/Não deixe o samba acabar/O morro foi feito de samba/De samba pra gente sambar/Quando eu não puder pisar mais na avenida/Quando as minhas pernas não puderem aguentar/Levar meu corpo/Junto com meu samba/O meu anel de bamba/Entrego a quem mereça usar/Eu vou ficar/No meio do povo espiando/A minha escola perdendo ou ganhando/Mais um carnaval/Antes de me despedir/Deixo ao sambista mais novo/O meu pedido final/Antes de me despedir/Deixo ao sambista mais novo/O meu pedido final/Não deixe o samba morrer/Não deixe o samba acabar/O morro foi feito de samba/De samba, pra gente sambar”.

As vendagens proporcionaram à cantora Disco de ouro. E, no disco seguinte, Morte de um poeta, de 1976, a cantora maranhense ganhou a aceitação popular e dos núcleos sambísticos. Os compositores Totonho e Paulinho Resende novamente são responsáveis pelo êxito do disco, com a música titulo e Lá vem você, esta tendo a parceria de Zayrinha. Tem ainda no repertório Agolonã, Retalhos, Cajueiro velho, Tatu, engenheiro do metrô, É melhor dizer adeus, Canto do mar, Lua menina, Traje de princesa, Tiê e Jesuino, galo doido. Morte de um poeta é uma das mais destacadas gravações de Alcione.

“Silêncio/Morreu um poeta no morro/Num velho barraco sem forro/Tem cheiro de choro no ar/Mas choro que tem bandolim e viola/Pois ele falou lá na escola/Que o samba não pode parar/Por isso meu povo no seu desalento/Começa a cantar samba lento/Que é jeito da gente rezar/E dizer que a dor doeu/Que o poeta adormeceu/Como um pássaro cantor/Quando vem o entardecer/Acho que nem é morrer/Silêncio/Mais um cavaquinho vadio/Ficou sem acordes, vazio/Deixado num canto de um bar/Mas dizem, poeta que morre é semente/De samba que vem de repente/E nasce se a gente cantar/E dizer que a dor doeu/Que o poeta adormeceu/Como um pássaro cantor/Quando vem o entardecer/Acho que nem é morrer”.

O disco Pra que chorar, de 1977, tem Ilha de maré, Pedra que não cria limo, Recusa, Solo de piston, Eu vou deixar, Feira do rolo, Corrente de barbantes, Tambor de criola e Pandeiro é meu nome, além da música título, de Baden Powell e Vinicius de Moares. O destaque é Pandeiro é meu nome, de Venâncio e Chico da Silva:

Falaram que meu companheiro/Meu amigo surdo parece absurdo/Apanha por tudo/Ninguém canta samba sem ele apanhar/Não ouviram que seu companheiro amigo pandeiro/Também tira coco do mesmo coqueiro/Apanha sorrindo pra povo cantar/Pandeiro não é absurdo, mas é o meu nome/Não me chamo surdo, mas aguento fome/Pandeiro não come, mas pode apanhar/Ao povo que vibra na força do som brasileiro/Não é só o surdo nem só o pandeiro/Tem uma família tocando legal/Você cantando, tocando e batendo na gente/Passando por tudo tão indiferente/Não conhece a dor do instrumental/Batuqueiro ê, batuqueiro/Cantando samba pode bater no pandeiro”.

Sufoco, de Chico da Silva e Antonio José, é o carro-chefe do disco Alerta geral, de 1978, que tem ainda Lundu de rapariga, Todos cantam a sua terra, A profecia, Eu sou a marrom, Seu rio, meu mar, Zelão, Mau negócio, A volta do mundo e Pode esperar, além da música titulo. Mas, o destaque é para Entre a sola e o salto, de Gilberto Gil, e Zelão, de Sérgio Ricardo.

Como argumentou um amigo, “o fundamental, Lenin, é mostrar aos leitores do Vila de Utopia as letras das músicas que alcançaram sucesso na voz de Alcione”. E, respectivamente, então, eis as músicas Zelão (a música tem também interpretação de Elza Soares, entre outros), e Entre a sola e o salto, uma obra prima do compositor baiano Gilberto Gil:

“Todo morro entendeu quando o Zelão chorou/Ninguém riu, ninguém brincou, e era Carnaval/No fogo de um barracão/Só se cozinha ilusão/Restos que a feira deixou/E ainda é pouco só/Mas assim mesmo o Zelão/Dizia sempre a sorrir/Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar/Choveu, choveu/A chuva jogou seu barraco no chão/Nem foi possível salvar violão/Que acompanhou morro abaixo a canção/Das coisas todas que a chuva levou/Pedaços tristes do seu coração”.

“Vê, por aquela janela/Entre a sola e o salto do sapato alto dela/Vê, por ali pelo vão/Entre a sola, o salto do sapato alto dela e o chão/Vê, como existe um abrigo/Entre a sola e o salto do sapado alto contra o perigo do orgulho, da ilusão/Basta um centímetro prum grande coração/No espaço ali embaixo/Entre a sola e o salto existe a imensidão/Vê, como cabe folgada/A imensidão do olhar/Numa nesga do chão/Num pedaço de calçada/Vê, que há bastante lugar/Prum coração chegar ali, ficar ali, passar dali pra acolá/Ê ê quanto amor/No espaço embaixo do sapato dela/Ê ê quanto amor/No abrigo embaixo do sapato dela/Ê ê quanto amor/No teto embaixo do sapato dela/Ê ê quanto amor/Na tenda embaixo do sapato dela.

Wilson Moreira e Nei Lopes sustentaram Gostoso veneno, música que deu título ao disco de Alcione de 1979, em primeiro lugar por longa temporada nas paradas de sucesso. No repertório, Amantes da noite, Bom Jesus dos Navegantes, Dia de graça, Faca de ponta, Menino sem juízo, Paraíba do norte Maranhão, Pra você não me esquecer, Primeira escola, Quero sim, Rio antigo (Como nos velhos tempos) e Salve a lama negra. O destaque é Dia de graça, samba manifesto do mestre Candeia. Confira a letra:

“Hoje é manhã de carnaval (ao esplendor)/As escolas já vão desfilar(garbosamente)/Ah! Aquela gente de cor com a imponência de um rei vai pisar na passarela (salve a Portela)/Vamos esquecer os desenganos(que passamos)/Viver a alegria que sonhamos(durante o ano)/Damos o nosso coração com alegria e amor a todos sem distinção de cor/Mas depois da ilusão, coitado/Negro volta ao humilde barracão/Negro acorda, é hora de acordar/Não negue a raça/Torne toda manhã dia de graça/Negro não humilhe, nem se humilhe a ninguém/Todas as raças, já foram escravas também/Deixa de ser rei só na folia/Faça da sua Maria, uma rainha todos os dias/E cante um samba na universidade/E verás que teu filho será príncipe de verdade/Daí então, jamais tu voltarás ao barracão”.

No início da matéria inseri a letra de “E vamos à luta”, de Gonzaguinha, que dá título ao disco de Alcione de 1980, fechando uma década na qual a cantora maranhense se destacou no cenário musical. Gonzaguinha, um dos compositores mais criativos da música brasileira, nos deixou sambas antológicos como Comportamento geral, Meu coração é um pandeiro, Pois é, seu Zé, Tá certo doutor, Com a perna no mundo, Artistas da vida, Desenredo (G.R.E.S. Unidos do Pau Brasil), A fábrica de sonhos, O que é o que é?, Deixa Dilson e vamos Nelson, Bom dia, É, e Meninos do Brasil.

No repertório de E vamos à luta tem Quadro, de Ismael, Carlos Dafé e Jon Lemos; Não me fale das flores, Chico Roque e Paulinho Resende; Deus lhe ajude e a mim não desampare, Vevé Calazans e Nilton Alecrim; A ponte, Élton Medeiros e Paulo César Pinheiro; Meu dia de graça, Dedé da Portela e Sergio Fonseca; Circo sem lona, Antônio Carlos Pinto e Jocafi; Cheguei tarde, Tião Motorista; Retratação, Reginaldo Bessa; Eu sei, Cartola; Olerê camará, Paulo Debétio e Joel Menezes: Resumo, Roberto Corrêa e Sylvio Son.

Na discografia da cantora consta Alcione (1981), Vamos arrepiar (1982), Almas e corações (1983), Da cor do Brasil (1984), Fogo da vida (1985), Fruto e raiz (1986), Nosso nome: resistência (1987), Ouro e cobre (1988), Emoções reais (1990), Promessa (1991), Pulsa coração (1992), Brasil de Oliveira da Silva do Samba (1994), Profissão: cantora (1995), Tempo de guarnicê (1996), Valeu demais (1997), Celebração (1998), Claridade – uma homenagem à Clara Nunes (2000), A paixão tem memória (2001), Faz uma loucura por mim (2004), Uma nova paixão (2005), De tudo que eu gosto (2007), Acesa (2009), Duas faces (2011) e Eterna alegria (2013).

Uma das boas gravações é Canto das três raças, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, no disco no qual homenageia a saudosa cantora mineira Clara Nunes.

“Ninguém ouviu/Um soluçar de dor/No canto do Brasil/Um lamento triste sempre ecoou/Desde que o índio guerreiro/Foi pro cativeiro/E de lá cantou/Negro entoou/Um canto de revolta pelos ares/No Quilombo dos Palmares/Onde se refugiou/Fora a luta dos Inconfidentes/Pela quebra das correntes/Nada adiantou/E de guerra em paz/De paz em guerra/Todo o povo dessa terra/Quando pode cantar/Canta de dor/ô, ô, ô, ô, ô, ô/ô, ô, ô, ô, ô, ô/ô, ô, ô, ô, ô, ô/ô, ô, ô, ô, ô, ô/E ecoa noite e dia/É ensurdecedor/Ai, mas que agonia/O canto do trabalhador/Esse canto que devia/Ser um canto de alegria/Soa apenas como um soluçar de dor”.

 

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

 

 

 

 

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