ABL: muito barulho por nada
Por Allyne Fiorentino
O Bule – Estamos em uma época de nervos à flor da pele. Finda, ao menos parcialmente, uma pandemia que revelou mais do ser humano do que gostaríamos de saber.
Ainda estamos atordoados em relação ao que fazer com o grande elefante branco na sala: sobrevivi a um evento peculiar da História da Humanidade, sob um (des)governo peculiar, e o que isso faz de mim?
Houve uma época em que poderíamos nos ancorar na Arte para nos auxiliar a trilhar um caminho duro de incertezas humanamente recorrentes (talvez até patéticas, mas sem resolução), porque a Arte, na minha opinião, é um estado de profunda clareza em relação ao presente, uma racionalidade extremamente apurada do ser/estar na sua época.
E é por isso que as grandes obras são atemporais, pois não há como ultrapassar a barreira para o futuro sem estar de pés firmes no presente, sorvendo-o até o último gole.
Dito isso, eu espero que tenham compreendido o que eu quis dizer: passamos por essa pandemia sozinhos; pela ressignificação da pandemia, sozinhos. Órfãos de Arte. E de boa arte, seja lá o que isso signifique para cada um que estiver lendo.
A apatia dos escritores, que não tiveram o timing de reagir aos grandes acontecimentos, só foi rompida quando houve a eleição da atriz Fernanda Montenegro para a Academia Brasileira de Letras. A mesma Academia que raramente se pronuncia sobre algum assunto.
Você, leitor, sabe nomear as pessoas da ABL que escolhem os novos membros? E você sabe como essas pessoas chegaram à ABL?
Eu imagino que as respostas serão negativas, e não sem razão! Muitas coisas no nosso país são feitas de forma obscura, sem muitos parâmetros… De repente, algo vira moda e passa a ser verdade absoluta. Tudo obscuro.
O que realmente nos importa saber é que, desde a sua fundação, a Academia Brasileira de Letras foi problemática, assim como todas as coisas formadas por pequenos grupos que se acham no direito de traçar parâmetros para um coletivo, sem se preocupar com os reveses e implicações dos seus atos.
Presididas por Machado de Assis (mas deixemos claro, a iniciativa não foi dele!) as reuniões para criação da ABL contavam com um grupo de pessoas ligadas pela escrita, mas mais do que isso, eram amigos.
Não que os grupos de amigos não possam criar coisas boas, mas o nepotismo, ou como gosto de chamar nesse caso, o “compadrio” no Brasil é algo estrutural e nos causa grandes sofrimentos ainda hoje.
Na época, muitos escritores foram indicados e concluiu-se, posteriormente, sob o jugo do tempo, que era mais compadrio do que mérito, visto que hoje essas obras não são consideradas relevantes.
A relação mérito – reconhecimento, além de naturalmente subjetiva por si só, não tinha parâmetros minimamente traçados, sabia-se apenas que era uma Academia para cultuar a língua e a literatura brasileira.
E é isso que estamos fazendo até hoje, em todas as nossas relações sociais brasileiras, sejam elas culturais, políticas, trabalhistas: vivendo sem mínimos parâmetros traçados.
Além disso, poucos sabem, ou sequer mencionam, ou sequer se interessam em saber, que algumas mulheres escritoras participavam dessas reuniões para a criação da ABL, forneciam seu arcabouço intelectual e que foram apagadas dessa história e da história da literatura, como a escritora carioca Júlia Lopes de Almeida e talvez outras que ainda hoje não sabemos nomear devido a esse apagamento proposital.
E não seria prudente, hoje, nos perguntarmos: mas não deveriam ser essas as pessoas inovadoras da época? Não deveriam ter enfrentado os padrões franceses, que queriam desesperadamente seguir, e permitir que as mulheres tivessem uma cadeira na Academia que elas mesmas ajudaram a criar?
Pois é, mas eram homens da sua época e, reitero: quebrar a barreira do presente exige profunda consciência dele e talvez isso lhes faltasse um pouco.
Mesmo em nossos dias, não se pode esperar dos homens da nossa época que ajam de forma diferente a não ser guiados por uma moda politicamente correta que os empurram e praticamente os obriga a enfrentarem o machismo estrutural, na maioria das vezes sem sucesso, pois é plastificado, falso.
Observem como o alarde e as críticas em relação a Fernanda Montenegro foram infinitamente maiores do que o alarde sobre Gilberto Gil. E eles provavelmente dirão: mas o cantor realmente faz “letras”, enquanto a atriz, não. Poderíamos mesmo acreditar nessas justificativas, mas sabemos, todas nós, que o chicote social pesa três vezes mais no lombo de qualquer mulher.
Se esperavam que a minha abordagem defendesse ou não a escolha dos recém laureados, sinto decepcioná-los, mas esse não é o cerne da questão.
Nem me parece inteligente discutir isso em relação a uma instituição que não foi fundada para esse propósito. Também sinto decepcionar quem ingenuamente acredita que isso é uma inovação, não é. É a manutenção do status quo.
Não pode ser considerada exceção a escolha de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil para compor a ABL, pois escolhas baseadas em parâmetros obscuros e de compadrio sempre foram a regra. A regra é não ter uma regra clara.
O que eu vejo é uma disputa de pequenos grupos que estão todos, sem exceção, interessados em manter o compadrio como meio de medir mérito. Seja no círculo dos consagrados, seja no círculo dos não consagrados, seja no círculo dos marginalizados.
Todos têm seus “amigos”, mas nenhum deles está debruçado verdadeiramente sobre o texto, sobre a palavra na folha de papel, a palavra como ela chega a seu leitor. Fala-se muito em autores, mas pouquíssimo em literatura.
Assim como algumas instituições extremamente conservadoras tentam surfar na onda do politicamente correto e nas modas que vão surgindo, encaixando certas figuras e certos discursos para garantir uma revitalização comedida que agrade ao público (que por sua vez também surfa nessa moda de maneira alienada), mas que mantém as bases intactas, assim eu também vejo esse episódio.
Vivemos em uma época em que as editoras perguntam aos aspirantes a autores que querem pulicar seus livros quantos seguidores eles têm no Instagram para verificarem se vale a pena publicá-los, ou se eles tratam de algum assunto de minoria que possa angariar público. Nada disso tem a ver com literatura. Percebe?
As imbricações desse assunto são muitas e não quero me alongar, mas quero deixar a reflexão de que independentemente de concursos e academias, as coisas continuam se desenvolvendo e criam suas próprias regras e vão se alastrando, sejam elas boas ou ruins.
Enquanto a gente tenta fazer a manutenção de um velho hábito, há muitos novos hábitos surgindo e sem nenhuma reflexão. Logo, eles serão também a regra e muitos terão perdido, novamente, o timing de agir diretamente sobre eles, sobre assuntos que realmente são importantes.