A voz dos que não falam

O cão Puck, desenho de CDA.

Pesquisa: Cristina Silveira

Conversa com o santo

Carlos Drummond de Andrade

São Francisco, bom-dia no seu dia!

Você é o santo mais camarada de todos

e depois, São Francisco, você é papo-firme…

Veja ao redor os bichos: deviam estar alegres

porque você os criou e compreendeu

e chamou a todos: Meus irmãos.

Mas estão calados, macambúzios. Alguns, mesmo, aterrorizados.

Sabe São Francisco? A gente ainda não aprendeu de todo sua lição.

A gente gosta de um ou outro bicho em particular,

como coisa nossa, de brinquedo; gosta sem gostar.

E nem isso, quanto aos outros que não nos pertencem,

as infinitas coleções de animais que sofrem em todos os lugares da Terra

e não podem dizer que sofrem, e por isto sofrem duas vezes…

E o pior, São Francisco: o sofrimento deles

muitas vezes é de nossa própria iniciativa.

Nós os torturamos e nós os matamos

pelo incrível gosto de torturar e de matar

e de tornar a fazer, pelos séculos a fora.

Confesso estas coisas muito encabulado,

mas é preciso, ao menos neste dia, seu Francisco,

dizer que as coisas não andam boas em matéria de amor,

o amor foi a matéria de sua lição.

Por isso, santinho nosso,

você providencie urgente sua volta ao mundo

para ver se dá jeito nestes seus alunos repetentes.

A voz dos que não falam

O “urso” e seus bichos

(Fonte: Página CDA na WEB)

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Em 1973, no auge do mutismo midiático de Drummond, se anuncia que ele havia aberto improvável exceção para alguém de nome Suzi. Suzi, só isso, nenhum sobrenome – distintivo genealógico que a felizarda, de resto, não poderia ter, por não ser possuidora de um pedigree. Sim, a repórter que conseguiu a façanha de arrancar aspas do mais recluso de nossos poetas era uma cadelinha, muito provavelmente vira-lata, mas nem por isso isenta de excelente faro jornalístico. Chegou a ele por delegação de Lya Cavalcanti, outra habilidosa perguntadeira, que nos anos 1950 arrancara de Drummond, em sucessivos papos ao microfone da Rádio Ministério da Educação e Cultura, as confissões autobiográficas que bem mais tarde vieram a compor o livro Tempo Vida Poesia.

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Em outubro de 1970, Lya propôs ao poeta a criação de um jornal. Para quê, se já existem tantos? – ponderou ele. Mas não há nenhum empenhado na divulgação do ponto de vista dos bichos, esclareceu ela. Como isso seria possível, argumentou o amigo, se os animais não falam? – e, no momento seguinte, se rendeu sem restrições, e até mesmo com “assanhamento”, confessará, à ideia de um jornalzinho mimeografado que se chamaria, exatamente, A voz dos que não falam. Lya nem precisaria ter reforçado o convite com um apelo em versos: “Please, meu caro poeta,/ deixa de ser um empata/ e com seu dedo de esteta/ faz o que pede esta chata”.

Com oito páginas, a publicação fez sua estreia em 4 de outubro de 1970, não por acaso dia de Francisco de Assis, o padroeiro dos animais, homenageado, na primeira página, com um poema escrito para a ocasião, “Conversa com o Santo”. Nos versos finais, roga-se a São Francisco que retorne urgentemente ao mundo, “para ver se dá jeito nestes seus alunos repetentes” – os chamados animais racionais, nem por isso capazes de respeitar os bichos.

A “conversa” da cadelinha Suzy com Drummond aconteceu três anos mais tarde, e veio precedida de declaração inflada de orgulho editorial: servia-se aos leitores “uma entrevista exclusiva com o autor que não dá entrevista nem para o Pasquim”, trombeteou A voz dos que não falam.

Bem escorada nas quatro patas e num bom preparo jornalístico, a repórter fez ao poeta meia dúzia de perguntas. Uma delas: teria o bicho homem direitos exclusivos ao planeta Terra? “Não”, respondeu o entrevistado: “Do seu direito à coexistência com as outras espécies animais, o que lhe advém é, antes, a responsabilidade pela sorte dos mais fracos e menos evoluídos.”

Que entende você por mundo cão? “Entendo um mundo tornado cruel pelo homem e não pelos outros seres vivos.” Que bicho gostaria ele de ser, se não fosse homem? “Eu não gostaria de ser bicho e ter de defender-me da agressividade dos não-bichos.”

Fechando a conversa, Suzy não conteve sua admiração pelo entrevistado – e, como quem joga um osso com bastante carne, lhe fez uma proposta: “Gostamos muito da sua poesia, achamos você um sujeito muito bacana e muito compreensivo, e por isso gostaríamos de nomeá-lo nosso filósofo oficial. Você aceita?”

Polidamente, o poeta declinou da oferta: “Obrigado. Mas o melhor é vocês dispensarem a filosofia e continuarem simplesmente integrados na natureza – coisas que nós, supostamente superiores, raramente sabemos fazer”.

Nada foi perguntado a Carlos Drummond de Andrade a respeito de sua relação com os bichos.

A fauna doméstica do poeta

(Fonte: Página CDA na WEB)

O amor de Carlos Drummond de Andrade pelos animais não era um amor qualquer. Foi posto à prova. Para começar, resistiu a uma queda de cavalo em Itabira, quando menino – pequeno desastre que descreverá, já maduro, em carta à sobrinha Flávia: para mal de seus pecados, aconteceu “diante de janelas e sacadas cheias de gente”, e ele saiu “mais encabulado do que machucado”. Com o vexame adicional de que se tratava de cavalo manso – tão pacato quanto outro pocotó que, no Pontal, a fazenda da família, lhe mordeu as costas. “Passear na fazenda”, contou Drummond numa entrevista, era um “castigo”: “As quedas de cavalo induziram-me a desconfiar dos encantos da vida ao ar livre”.

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No prosaísmo do dia a dia, Carlos Drummond de Andrade não se limitou a participar de iniciativas em defesa dos animais, quase sempre em companhia da amiga Lya Cavalcanti. Seu engajamento nada tinha de platônico. Ele militou, por exemplo, na seção carioca da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, a SUIPA, da qual foi a certa altura conselheiro. “Sou candidato ao Conselho Consultivo”, escreveu ele na véspera de eleições ali, em 1957 – e debulhou um compromisso de campanha: “Prometo aconselhar sempre com sabedoria, prudência e justiça, depois de ouvir, é claro, meus queridos conselheiros particulares: Puck (um cãozinho velho) e Inácio (um gatinho novo)”.

No dia, porém, 13 de junho, em que aquela crônica foi publicada no Correio da Manhã, o conselheiro Puck já não vivia: na manhã de 5, o poeta e sua mulher, Dolores, o tinham levado a uma clínica veterinária na avenida Atlântica, envolto num lençol, para que, caso perdido, fosse piedosamente sacrificado.

“Com 15 anos de vida, seu estado era lastimável, e não havia esperança de recuperação”, anotou Drummond em seu diário. “Uma injeção – e mais nada. Deixamos o corpo na clínica, e trago para casa, com o sentimento de perda, o de ingratidão”.

Do veterano Puck – seria um samoieda, um spitz ou simplesmente um plebeu, fruto de emaranhada mestiçagem? – haveriam de ficar, além de lembranças de longa duração, algumas fotografias, numa das quais ele aparece aconchegado no abraço de seu dono.

O mesmo diário registrou também, entre os bichos de estimação do poeta, um canário que seu tio Elias deu à sobrinha neta Maria Julieta.

“Passarinho sem sorte”: um dia o vento derrubou a gaiola e lhe quebrou uma perna – problema que seria agravado quando o poeta teve a má ideia de promover uma confraternização do canário com “um periquito estúpido”, daí resultando ferimento ainda mais sério. Restou a Drummond esperar que a filha voltasse do colégio e sepultasse o passarinho nos fundos da casa, embalado numa caixinha de sabonete. Mesmo em Copacabana, havia quintais, naquele tempo.

A família morava ainda no 81 da Rua Joaquim Nabuco, no Posto 6, em outubro de 1959, quando lá chegou Inácio, gato amarelo com listras brancas. Por um tempinho dividiu o espaço e o coração dos donos com Puck, que, a ano e meio do fim, o recebeu “com indiferença de senhor maduro”,

Ambos já não viviam quando veio Crispim, felino “preto, barriga e pescoço brancos, focinho branco”, permanentemente “disposto à confraternização”.

Se o nome lhe foi dado pelo dono, não terá sido escolha casual: Antônio Crispim foi um de seus pseudônimos nos anos em que foi cronista do diário oficial Minas Gerais, até trocar Belo Horizonte pelo Rio, em 1934. “Tenho hoje um grande amigo no escritório”, consignou Drummond em seu diário, e agregou ilustração: “No momento, aos 3 meses e meio de idade, ele me acaricia o queixo.”

O trono de gato dos Drummond de Andrade teria um derradeiro ocupante, Garrincha. Dele se sabe que em meados de 1961 se transformara em “problema”: “Além de sujar constantemente na sala de estar e outros cômodos, com evidente descontrole nervoso, começou a procurar tensamente uma gata para amar.” Passava o tempo a miar, faminto, para as gatas do vizinho, “sem correspondência com a época do cio” de suas pretendidas.

Para completar, Garrincha contraiu micose braba que ameaçava propagar-se não só para gatos das redondezas como para os bípedes da casa, entre estes um netinho que, vindo de Buenos Aires, onde viviam Maria Julieta e o genro Manolo, passava um tempo com os avós maternos.

Drummond foi aconselhado a abandonar Garrincha no Passeio Público ou no Campo de Santana – mas repeliu a alternativa: “Como desfazer-me de um animalzinho que veio novo para nossa casa e que tanto se afeiçoou a mim, fazendo-me tão gentil companhia?” O gato lhe resolveu o problema, desaparecendo de uma vez por todas.

Uma penosa decisão, àquela altura, já estava tomada: “Nunca voltarei a ter nenhum animal em casa”.

Drummond: o “querido capanga”

Elvia Bezerra (Instituto Moreira Salles, 23.09.11)

É difícil escrever sobre o arquivo de Drummond sem começar lembrando o arquivista nato que foi o poeta, assunto de que já tratei aqui mesmo, em post anterior.

Dessa vez, nos itens por ele organizados que chegaram ao Instituto Moreira Salles em fevereiro deste ano, ao lado dos 4 mil livros de sua biblioteca pessoal, encontrei uma caixa de papelão criteriosamente anotada em um dos lados – era assim que ele ordenava parte do material. Entre outras indicações do conteúdo, como se vê na foto a seguir, lê-se: A Voz dos que Não Falam.

Trata-se de um jornaleco artesanal, de oito páginas, mimeografado, que exibe, na primeira página, o crédito: Direção: Lya Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade.

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Muita gente deve ter duvidado de que o coeditor era mesmo, naquele ano de 1970, o maior poeta vivo do Brasil, que, com a amiga, a jornalista Lya Cavalcanti, lançava aquela publicaçãozinha minguada. Não só era verdade como também para a dupla constituía empreitada seriíssima. Fermentava havia alguns anos nas cabeças dos dois amigos, que já tinham mesmo pensado em fazer, juntos, um programa sobre bichos na então PRA-2, Rádio Ministério da Educação, onde Lya trabalhava.

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A cumplicidade de 1954 foi tão envolvente, que no fim do ano Drummond propôs a Lya fazerem um programa sobre bichos, ainda na Rádio Ministério. Ela, que não aprendera nada sobre pontualidade no período londrino, reconhecia diante de todos sua irrestrita incapacidade de cumprir prazos. E como não ignorava o estilo organizado do poeta, teve medo do compromisso. Enviou-lhe carta com as suas justificativas:

“Minha ideia (se o seu orgulho permitir) é que eu ajude você de alma e coração, mas que o programa seja inteiramente seu. Se for falado por nós dois e possivelmente por mais gente, como eu acho que devia ser, pois isso valorizaria enormemente a coisa, meu nome pode aparecer como participante, conforme apareceu da outra vez. […] Mas sinceramente eu preferia não sentir a responsabilidade de ganhar dinheiro, ou ter o nome como coautora do programa, para depois você ficar com todo o trabalho, ou então subordiná-lo à minha preguiça, ou carência de imaginação.”

Não foi por essa negativa de Lya que a parceria se desfez. Mesmo depois que ela saiu da PRA-2, Drummond continuou a ajudá-la nas campanhas. Na crônica “SUIPA”, de 13 de junho de 1957, ele escreveu:

Recusei mesmo filiar-me à Academia de Letras do Café e Bar Bico, no Posto 6. Mas à SUIPA eu pertenço com muita honra e gosto. Sou candidato ao Conselho Consultivo e prometo aconselhar sempre com sabedoria, prudência e justiça, depois de ouvir, é claro, meus queridos conselheiros particulares: Puck (um cãozinho velho) e Inácio (um gatinho novo).

O nome que Drummond escolheu para o seu cão é de uma personagem de A Midsummer Night’s Dream, que se define com a merry wanderer of the night. Quanto a Inácio, aparece em “Imagens particulares: Inácio: onde?”, de 30 de julho de 1959, que, com pequenas modificações, recebeu o título de “Perde o gato”, incluída em Cadeira de balanço. Termina com esta arguta observação da psicologia felina:

“Se Inácio estiver vivo e não sequestrado, voltará sem explicações. É próprio do gato sair sem pedir licença, voltar sem dar satisfação. Se o roubaram é homenagem a seu charme pessoal, misto de circunspeção e leveza; tratem-no bem, nesse caso, para justificar o roubo, e ainda porque maltratar animais é uma forma de desonestidade. Finalmente, se tiver de voltar, gostaria que o fizesse por conta própria, com suas patas; com a altivez, a serenidade e a elegância dos gatos.”

Se anos atrás Drummond propusera a Lya fazerem um programa sobre bichos, em 1970 ela o desafiou a fundar um jornal que manifestasse a opinião dos animais, a qual ela mesma se encarregaria de traduzir. Desafio em quadrinha irreverente:

Please, meu caro poeta /Deixa de ser um empata /E com seu dedo de esteta /Faz o que pede esta chata.

Drummond não só aceitou o convite, com entusiasmo, como também em 8 de outubro de 1970, no Jornal do Brasil, quatro dias depois do lançamento do A Voz dos que Não Falam, divulgava a publicação na crônica de mesmo título:

Convidado a partilhar da direção do órgão, topei com assanhamento. […] Lya entende, e com ela muitos filósofos, que enquanto não souber conviver com os bichos, assumindo a responsabilidade de protegê-los e respeitá-los em sua condição de seres vivos, o homem está longe de merecer o nome de civilizado.

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Mas voltemos à publicação. A ideia era de que o Voz fosse mensal foi por água abaixo: Lya, com os adiamentos de sempre, não achava tempo para cumprir o cronograma. Como o número 2 do jornalzinho não tivesse saído em novembro, falhando assim a programação logo no início, saíram, em dezembro, os números 2 e 3.

Nem assim Drummond se conformou com a falta. Na crônica “Um jornal diferente”, do Jornal do Brasil de 12 de janeiro de 1971, ele, que levava o Voz muitíssimo a sério, não esconde o desapontamento com o atraso do periódico, embora se esforçasse por justificá-lo:

A Voz dos que Não Falam, um jornal muito “bacana”, órgão oficioso dos bichos ditos irracionais, editado pela sra. Lya Cavalceanti com a conivência deste cronista. Dizia-se mensal, o primeiro número, saído em outubro, fez sucesso na praça General Osório, e depois…

Lya desculpava-se com o amigo em bilhetes carinhosos, que começavam por “Coacatu [bom dia, em tupi], meu querido”. Considerava “presente régio” para a causa dos animais as crônicas que Drummond lhes dedicava. Declarava-se envergonhada por não cumprir os prazos, refazia promessas, atribuía a demora a “motivo de cachorro”, mas meses foram se passando e o no 4 do Voz só sairia em 4 de outubro do ano seguinte, 1971.

Daquela vez não houve charme ou quadrinha de Lya que desse jeito: o coeditor perdeu a paciência e desistiu da parceria. No exemplar da coleção do bibliófilo Plínio Doyle, que o recebeu das mãos do próprio Drummond, lê-se a anotação do poeta, metódico infalível que fez questão de registrar, a mão: “Este número já saiu sob a direção exclusiva de Lya Cavalcanti. C.D.A.”.

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Em 17 de agosto de 1987, quando a “indesejada das gentes” levou Drummond, o Voz, que havia muito agonizava, ressurgiu com um artigo de Lya.

[…] mas eu sempre o chamei de “meu capanga” porque ele estava invariavelmente a postos para apoiar, prestigiar e endossar qualquer movimento que pretendesse melhorar de qualquer forma a condição do animal neste mundo. E agora tenho a impressão de pisar em falso sem as opiniões e encorajamentos de quem durante trinta anos nunca faltou a uma briga por bicho.

Lya Cavalcanti morreu em 17 de novembro de 1998. Drummond fora profético: dizia à amiga que ela faria o necrológio dele, e não o inverso.

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