A traição da língua
Foto: reprodução da Revista O Cruzeiro (RJ) de 23/2/1957
Por Cornélio Penna
Escolhi ao acaso, entre os cento e tantos romances novos portugueses que possuo, o que iria reler, para escrever sobre ele algumas notas despretensiosas, cujo único fim é a sua divulgação, o “Cana ao vento”, de Bastos Xavier.
Guardara de sua primeira leitura a impressão de que lera um livro admirável. De seu autor conheço apenas o nome e nada sei de sua vida e de sua situação na literatura de Portugal. Tanto, são estudadas, hoje as causas, as fontes, as origens, tanto literárias como familiares de cada autor, que muitos leitores têm curiosidade de apenas de sua figura real e não de sua criação literária, de sua vida interior indevassável.
Os papeis, os documentos, as cartas, as memórias preparadas, são peças que não se ajustam e o cimento entre elas é unicamente a imaginação do biógrafo, que assim falseia inteiramente o todo.
Por isso, para mim, as biografias são obras de ficção, onde as coincidências resultantes das pesquisas formam o fundo enganoso. Apesar de estar inteiramente fora de nosso meio literário e de não ter nenhuma probabilidade de ser biógrafo, tenho uma pequena experiência pessoal nesse sentido, João Condé publicou meu retrato aos onze anos e agora chegou-me às mãos um recorte do jornal O Estado de São Paulo com o artigo de Hugo Figueiredo em que este diz entre outras coisas, que as fotografias sugerem a pesquisa do traço definitivo do homem, nas imagens da infância.
E transcreve a legenda da fotografia, assim como a de outros escritores. Na minha, diz o amável articulista que é o rebento de família burguesa, a quem a mãe vestiu a melhor roupa e levou ao melhor atelier de Campinas, e mais adiante, garoto feliz, com sua gravata axadrezada, seu gorro caído para o lado, a bengalinha, etc. E dá conclusão tirada dessas premissas.
Ora, a “família burguesa” era constituída por cinco crianças, arrastadas por minha mãe, que viera de Itabira para o Rio, enlouquecida da dor pela morte de meu pai, logo seguida pela de minha avó e a de sua madrinha e irmã mais velha, que fora parar em Campinas como quem se refugia em um canto onde possa esconder a sua tristeza a que quase cinquenta anos depois era a mesma, silenciosa e sagrada, incompreendida muitas vezes por nós.
Nada da segurança e da paz que sugere a expressão “família burguesa”. Garoto feliz, com seu gorro, sua gravata axadrezada…. Não vale a pena falar na minha infância, luta constante contra a melancolia, a inquietação sem causa, o sentimento de culpa que eu tinha, da desgraça que pesaria sempre sobre nosso lar, sem que eu o pudesse conjugar…
Lembro-me perfeitamente da roupa marrom e da bengalinha e do gorro. Fui tirar o retrato, eu sozinho, e não tinha doze anos, com uma roupa marinheira de gorgorão branco, com sapatos brancos, e o fotografo, que era realmente o melhor de Campinas, disse-me que fosse buscar as provas dentro de alguns dias. Quando fui recebê-las, para mostrá-las em casa e ser escolhida a melhor, o retratista me disse que não tinha saído bem a chapa e que ia tirar outro retrato naquele momento.
Prestei-me a isso com a melhor vontade, e só quando trouxe a fotografia pronta para casa, é que vi que a tinta tinha tirado com a minha roupa comum e usada, e com os sapatos “rústicos” como se dizia em São Paulo… Não me lembro mais que senti diante do riso de meus irmãos… Os documentos estudados e interpretados nas biografias têm o mesmo valor.
Assim, o único livro que tenho de Bastos Xavier, traz a data de sua publicação, 16 de setembro de 1944, é uma mensagem e não uma carta de amigo ou conhecido, cuja figura e supostas ideias se fazem entrever por entre as linhas que leio.
Logo que concentrei a leitura da “Cana ao vento” tive a impressão de que o livro não correspondia à lembrança alta que me deixara da primeira vez, pois agora tinha diante dos olhos um humorista ligeiramente vulgar.
Mas, à medida que fui lendo, compreendi que era mesmo um livro admirável, muito acima dos outros livros que lera ultimamente e que o que me desconcentrava era unicamente a habitual traição de nossa língua, ainda mais grave nos portugueses de Portugal.
Feita para ordens militares, para discursos reboantes, para alexandrinos, para a chalaça e também para o fado trágico, o escritor julga ter composto um poema e ao lê-lo vê que fez um discurso para ser lido; deseja fazer leve humorismo, e verifica ter intercalado em seus escritos piadas ásperas e palavras que apenas desequilibram e destoam do conjunto.
Isso já era sensível em Eça de Queiroz, e aquele “mando um excelente havana” em momento de grande intensidade do enredo, parece descendente em linha reta desse escritor. Mas isso é crítica e eu não sou crítico, pois desejo apenas divulgar, como já disse, a obra nova dos romancistas portugueses, desiguais em vigor e profundidade, mas em bela florescência.
À medida que se lê “Cana ao vento”, o livro toma vulto e os choques e problemas que apresenta se tornam complexos e tratados com funda sinceridade, vai até o fim violento, áspero, com lances de grande dramaticidade, com sitos pensamentos, em linguagem também forte e humana. Fica em nossa memória.
[Literatura e Arte (RJ), 9/10/1954. BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]
Excelentes e curiosas as matérias sobre/de Cornélio Penna que a Vila de Utopia vem publicando por força da competência investigativa de Cristina Silveira.