A retomada que não funcionou: um alerta nos números da segunda onda de Covid-19

“A mensagem do trabalho é que não devemos baixar a guarda pelo fato de a epidemia ter sido ‘controlada’ pela adoção de medidas de controle em um primeiro momento” – Giovani Vasconcelos, professor do Departamento de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador da rede ModInterv

Com base em parâmetros do modelo matemático, o estudo apresenta um índice que foi descrito pelos pesquisadores de “número de mortes que poderiam ter sido poupadas se o país tivesse conseguido evitar uma segunda onda de covid-19”. A situação foi verificada em Marrocos, Austrália, Áustria, Alemanha e Sérvia.

Todos são países que tinham alcançado o platô da curva de mortalidade por covid-19 — que, no gráfico que considera número de mortes acumuladas e dias desde a primeira morte, significa ausência de mortes —, e viram a retomada da curva chegar a níveis ainda mais altos na segunda onda. Nesse cenário, os casos mais graves dentre os países considerados no estudo são os do Marrocos (12,7 vezes mais mortes), do Irã (8,7 vezes) e da Alemanha (8,4).

O estudo dá números à sensação de “péssima escolha” que governos de países com medidas de contenção bem-sucedidas vivenciaram na sequência das tentativas de retomada do cotidiano ainda sem a existência de uma vacina contra a doença.

“A mensagem do trabalho é que não devemos baixar a guarda pelo fato de a epidemia ter sido ‘controlada’ pela adoção de medidas de controle em um primeiro momento. Quem se ‘arriscou’ e descuidou demais, pagou um preço alto”, avalia Giovani Vasconcelos, professor do Departamento de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador da rede ModInterv. Também fazem parte da rede pesquisadores das universidades federais de Pernambuco (UFPE) e Sergipe (UFS).

Os outros países que tiveram retrocessos com essa dinâmica foram Austrália, Japão, Itália e Sérvia. Segundo um dos conceitos inaugurados pelo estudo, esses países apresentaram uma “segunda onda padrão” da doença, em que a retomada da curva de mortalidade é visível porque houve em algum momento um achatamento dela. Ou seja, a sensação de regressão no combate à doença foi perceptível, ganhando muitas vezes repercussão mundial, porque as populações já haviam experimentado uma época de controle.

Outro caso não mencionado no estudo, mas também considerado pelos pesquisadores como de “segunda onda padrão”, é o da Suíça. “No ajuste da curva de óbitos desse país se vê claramente que a segunda onda é enorme, com cerca de cinco vezes a amplitude da primeira, quando medida em termos dos platôs da curva acumulada”, avalia Vasconcelos.

O risco de “segunda onda” já havia sido registrado em outro estudo da rede, “Power law behaviour in the saturation regime of fatality curves of the COVID-19 pandemic”, publicado no final de julho no medRxiv e nesta quinta-feira (25), revisado por pares, no Scientific Reports.

Nele, os cientistas aplicam o modelo matemático para medir o comportamento das curvas de mortalidade e concluíram que o achatamento dessa curva precisa ser alcançado rapidamente — por meio de medidas rígidas e por tempo prolongado — não só para evitar mortes, mas para impedir que a doença ressurja. Já nesse estudo, os cientistas notaram a “reaceleração das curvas de fatalidade” em alguns países.

Países como o Brasil, com cenário de mortes constantes, tiveram “segunda onda anômala”

No artigo mais recente, em contraponto à “segunda onda padrão”, os pesquisadores construíram o conceito de “segunda onda anômala” para definir a condição de países que experimentaram uma nova onda da doença sem nunca terem contido as mortes. Nesse quadro estão Brasil, Irã e Estados Unidos.

No caso dos países com “segunda onda anômala”, a constância do alto número de mortes diárias causadas pela covid-19 já na primeira onda fez com que essa se estendesse por longo período e já fosse significativa em número de mortes

Segundo Vasconcelos, os conceitos foram inaugurados para distinguir os dois tipos de ondas. “Na Física, existem processos que dão origem a ‘ondas anômalas’. Embora os processos sejam bem diferentes, fizemos uma analogia com esses fenômenos físicos para introduzir o conceito de ‘segunda onda anômala’ no contexto de epidemias”, explica.

No caso dos países com “segunda onda anômala”, a constância do alto número de mortes diárias causadas pela covid-19 já na primeira onda fez com que essa se estendesse por longo período e já fosse significativa em número de mortes, portanto difícil de ser superada. Ainda assim, a curva de mortalidade mostra uma acentuação no número de mortes em algum momento da pandemia.

Ainda assim, o estudo sustenta que esses países tiveram uma segunda onda. No Brasil, ela se apresenta graficamente no dia 26 de outubro. É possível notá-la porque o país, mesmo em meio a uma situação preocupante, apresentou leve queda no número de mortes a partir de um pico, em junho, mas em outubro essa tendência se inverteu e o número diário de mortes voltou a crescer, iniciando assim a segunda onda. Até o último dia, 24 de fevereiro, o país registrava mais de 248,5 mil mortes por covid-19, das quais 62% ocorridas até 19 de outubro.

A situação é oposta à de países que experimentaram a “segunda onda padrão”. Pelas medições da ModInterv, a segunda onda alemã, por exemplo, começou em 17 de outubro, após um verão marcado por reabertura de bares e de festas. O país adotou o lockdown (protocolo de isolamento) em novembro, o que não havia feito antes — o sucesso da contenção se baseava na testagem em massa e no monitoramento de infectados pelo vírus Sars-Cov-2.

Depois de um Natal com restrições às reuniões familiares, o governo alemão prorrogou o protocolo três vezes, sendo a última delas para 7 de março. Até o último dia 24, o país registrava quase 68,8 mil mortes por covid-19 e apenas 14% delas ocorreram antes de meados de outubro.

“A segunda onda começou a partir de um patamar alto de óbitos diários e, portanto, bem antes de a primeira onda ter sido ‘achatada’, por isso dizemos que foi um efeito ‘anômalo’. A segunda onda existe, mas o pico dela mostrou-se menor que o primeiro. É possível que, nesses casos, o ‘sofrimento’ mais prolongado tenha deixado a situação tão ruim que não teve muito como piorar”, avalia o professor Antônio Macêdo do Departamento de Física da UFPE, um dos autores do trabalho.

Gráficos matemáticos detectaram países em “terceira onda” de covid-19

Por meio da abordagem dos estudos da ModInterv, que usam modelos matemáticos, já se verificam países em “terceira onda” de covid-19. No universo dessas projeções, cada onda equivale a uma re-aceleração da curva de mortalidade por motivos variados, desde que não sejam atribuídos à flutuação estatística — isto é, se apresentam como tendências, não casuísticas.

Entre os países do estudo que haviam "achatado" a curva de mortalidade de covid-19, o Marrocos tem o caso mais preocupante: foram 12,7 vezes mais mortes na segunda onda em relação à primeira. Na foto, a cidade de Rabat. Foto: Lisa Ferdinando/DoD/Fotos Públicas
Entre os países do estudo que haviam “achatado” a curva de mortalidade de covid-19, o Marrocos tem o caso mais preocupante: foram 12,7 vezes mais mortes na segunda onda em relação à primeira. Na foto, a cidade de Rabat. Foto: Lisa Ferdinando/DoD/Fotos Públicas

“Matematicamente falando, podemos definir uma ‘onda epidêmica ‘ como um regime de forte aceleração no crescimento dos números de casos e óbitos, que se mantém por um período prolongado, digamos semanas. Ou seja, houve de fato uma mudança na dinâmica da epidemia e nos respectivos parâmetros epidemiológicos. Essa re-aceleração é um sinal claro do início de uma onda epidêmica”, argumenta Vasconcelos.

Uma re-aceleração culmina em um pico e pode ser seguida de uma desaceleração, em uma dinâmica com possibilidade de se repetir em diversos momentos. De acordo com o modelo da ModInterv, vários países já exibem uma terceira onda, entre eles Sérvia, Estados Unidos e Japão. “É possível ainda que alguns venham a exibir ainda uma quarta onda, até que a epidemia seja controlada pela vacina”, avalia o coordenador da rede.

Projeções da Modinterv estão disponíveis em aplicativo para celular

O sistema ModInterv se baseia em um modelo matemático descrito em um artigo científico publicado em junho na revista PeerJ, focada em ciências da vida e ambientais. A inovação do modelo é a capacidade de adaptação da sua fórmula, que permite fazer projeções em diferentes cenários e localidades, desde que a hipótese de um tratamento farmacológico específico para a doença esteja fora da equação. A nova versão do aplicativo já incorpora o modelo com segunda onda e permite identificar se a mesma está presente em uma dada localidade.

O ModInterv pode ser acessado por meio de aplicativo para navegadores de internet e celulares, batizado com o nome da rede. Tanto na ferramenta on-line como na versão para celular, o aplicativo permite escolher curva (contágio ou óbitos) e localidade (cidade, estado ou país). Há ainda a opção de gerar imagens dos gráficos para download.

O aplicativo foi desenvolvido pelo doutorando Arthur Brum, do programa de Física da UFPE, e pelo professor Gerson Duarte, do Departamento de Física da UFS, sob coordenação de Vasconcelos e participação dos demais pesquisadores da Rede ModInterv. Está disponível para uso pela internet e para download na Google Play Store (baixe neste link)

 

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