A falsificação da história do golpe de 1964 forjada pela comunicação do governo Bolsonaro
Para Carlos Fico, “a Secom divulga essas informações falsas com o propósito político de obter apoio para a tese de que a ditadura militar foi positiva para o Brasil“
Foto: Arquivo Nacional
Nas redes sociais, comunicação do governo federal distribuiu desinformação em seus canais oficiais distorcendo fatos e confundindo o público
Por Rubens Valente
Agência Pública – As mentiras contadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre o golpe de 1964 são conhecidas e se intensificaram ao longo de seu mandato. Pela primeira vez, contudo, o órgão público responsável pela comunicação do governo federal distribuiu desinformação em seus canais oficiais nas redes sociais, distorcendo fatos e confundindo a cronologia da ação militar que depôs o então presidente eleito, João Goulart (1919-1976).
Ouvidos pela Agência Pública, dois dos principais historiadores do período repudiaram a narrativa apresentada no último dia 4 de setembro pela Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) em uma série de postagens no Twitter (@gov_dobrasil) e no Instagram (@gov_brasil) a pretexto das comemorações do bicentenário da Independência no 7 de Setembro.
Embora formalmente vinculada ao Ministério das Comunicações, a Secom é também a comunicação oficial da Presidência da República. Procurada pela Pública na última sexta-feira (9), a Secom não se manifestou até o fechamento deste texto.
“Apavorante”, disse, a respeito da versão palaciana, a professora titular do Departamento de História da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Heloisa Starling e autora de “Os senhores das gerais – Os novos inconfidentes e o golpe de 1964” (ed. Vozes, 1986). “O que é perigoso é que não estão recontando a história, não é uma versão da história. O que eles estão fazendo é errado, estão falseando a história.”
Para o professor titular de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Carlos Fico, autor de “Como eles agiam” (ed. Record, 2001), “a Secom divulga essas informações falsas com o propósito político de provocar reações nos opositores e obter apoio para a tese de que o golpe de Estado de 1964 e a ditadura militar foram positivos para o Brasil – o que, supostamente, transpareceria apoio dos militares ao atual presidente”.
A deflagração do golpe
Nas publicações nas redes sociais, a Secom associou o golpe de 1964 a outros eventos que representaram vitórias democráticas para o país, como os comícios das Diretas-Já, no início dos anos 80, e a participação do Brasil nas duas guerras mundiais. Ao descrever a ação que derrubou Goulart, a Secom estabeleceu uma ligação entre uma suposta afirmação do então deputado federal Ernani do Amaral Peixoto (1905-1989), erroneamente chamado de “senador”, e a ação militar contra Goulart.
A Secom escreveu: “Em 30 de março, João Goulart reforçou seus posicionamentos políticos diante da ala militar que lhe apoiava, clamando pelo ‘golpe das reformas de base’, em suas palavras. Na mesma noite, o senador Ernâni do Amaral Peixoto sentenciou que João Goulart não era mais o presidente e, nas horas seguintes, o general Mourão Filho acionou um levante militar de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, onde estava Jango”.
Assim, segundo a Secom, os militares teriam ocupado um suposto vácuo de poder a partir de crises internas de políticos civis, antecedida por uma ameaça de Goulart à democracia.
Segundo os historiadores, porém, Amaral Peixoto não teve participação real alguma no curso dos acontecimentos. Ao usar o verbo “sentenciar”, a Secom dá a entender que houve alguma decisão política no Senado contra Goulart na noite do dia 30 de março, o que também nunca aconteceu.
Carlos Fico explica que Peixoto não teve “nenhuma” participação no golpe. No momento do golpe, o então deputado pelo PSD, que só se tornaria senador em 1970, estava politicamente distante de Goulart por conta do lançamento, pelo PSD, da candidatura de Juscelino Kubitschek à Presidência da República em 1965.
Na noite do dia 30, Amaral Peixoto viu pela TV o discurso de Goulart no Automóvel Clube e, ao final, comentou com seu amigo Naio Lopes de Almeida que “Jango não é mais presidente da República”. O comentário de um personagem secundário, um mero deputado federal, não foi tornado público na época e, assim, não teve impacto na rebelião militar.
De acordo com Fico, Peixoto era próximo do general golpista Olympio Mourão Filho (1900-1972). Semanas depois, quando a Presidência já era ocupada pelo general Castelo Branco (1897-1967), Amaral Peixoto encontrou-se com Mourão, que comentou que antes do golpe o havia procurado para participar do “movimento”. “Amaral diz que respondeu da seguinte forma: ‘E por sorte sua e minha não nos encontramos’. Amaral disse nessa conversa (presenciada por Martins Rodrigues, líder do PSD) que nunca se sabe como acaba uma revolução”, disse Fico.
“A constatação de Amaral Peixoto, na noite do dia 30 de março de 1964, foi feita diante da evidência de que o presidente não contava com apoio militar e muito menos contaria com tal apoio depois do discurso no Automóvel Clube. Isso nada tem a ver com ‘torcida’ em favor do golpe, que ele não desejava.”
“A frase foi dita desoladamente, lamentando a situação. Apenas Naio a ouviu. Não teve nenhum impacto, nem poderia ter, em relação ao golpe, porque só foi conhecida muitos anos depois. A Secom quer apenas fazer provocações porque sabe que esse tipo de texto irrita os que se opõem ao governo”, disse o historiador da UFRJ.
Heloisa Starling disse que, na noite do dia 30, Amaral Peixoto “estava em casa, se restabelecendo de um infarto”, não teve nenhuma relevância no golpe, e inclusive havia participado ativamente do governo Goulart, como ministro e como presidente do PSD.
“Amaral Peixoto não fez nenhum pronunciamento público naquele momento [do golpe]. Pode ter feito um comentário a alguém próximo. Do jeito que a Secom conta, é como ele estivesse ‘autorizando’ um levante militar. Quem vai declarar vaga a Presidência não é Amaral, é o presidente do Senado, mas só depois, em 2 de abril.”
Starling lembrou ainda – fato novamente omitido pelas mensagens da Secom – que havia uma ampla conspiração militar em andamento, com envolvimento até de governadores de Estado, como o de Minas Gerais. Mourão Filho apenas precipitou o levante militar, o que contrariou o plano dos generais líderes do golpe, que pretendiam desencadeá-lo somente na noite de 10 de abril.
Além disso, a “Operação Brother Sam”, pela qual o governo dos EUA apoiaria o golpe no Brasil, havia começado pelo menos 20 dias antes do 30 de março, com a mobilização de “um porta-aviões, um porta-helicóptero, seis navios contratorpedeiros, mísseis teleguiados, armas, munições e cerca de 550 mil barris de combustível”.
A Agência Pública também apurou que a Secom cortou e tirou do contexto a frase atribuída a Jango no discurso da noite do dia 30 de março no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. A transcrição mostra que, quando Goulart falou sobre “golpe”, estava justamente reagindo às informações de que a extrema-direita tramava contra ele.
Na íntegra, Goulart disse: “Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos Congresso fechado. Ao contrário, queremos Congresso aberto. Queremos apenas que os congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares”.
Starling disse que “Goulart não propôs um golpe de Estado para implementar suas reformas de base. Tanto é verdade que Goulart não ordenou uma reação armada quando o golpe contra ele efetivamente ocorreu”.
O papel de Luís Carlos Prestes
Um segundo tuíte da Secom associou o líder comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990) a um suposto apoio armado ao governo de Goulart. “Luiz Carlos Prestes colocou 40 mil militantes do Partido Comunista de sobreaviso para defender Goulart, e a embaixada soviética queimou documentos com medo de um ataque”, escreveu o canal oficial do governo Bolsonaro.
Heloisa Starling disse que a Secom manipula informações ao sugerir que o Partido Comunista era uma força armada a serviço de Goulart e exagera os números.
“Se o Partido Comunista tivesse 40 mil militantes seria uma força política em condições até de pleitear uma Presidência. Durante o golpe, o PC cai como um castelo de cartas porque era muito pequeno. Prestes chegou a dar uma entrevista dizendo que ‘não vamos admitir’ um golpe. Mas não há atuação efetiva do PC do dia 30 de março até a queda de Goulart, o PC não faz nada, ele some, e assim também não teve relevância na história do golpe.”
O historiador Carlos Fico explica que o Partido Comunista Brasileiro “não tinha maior penetração e seria inteiramente incapaz de mobilizar tantos militantes”.
“O PCB defendia uma linha pacifista, de modo que não deixaria militantes de ‘sobreaviso’ – para fazer o quê, se o PCB era contra pegar em armas? Prestes nem foi convidado para o Comício da Central [do Brasil, no Rio]. Documento do partido alegava que Jango fazia ‘a exigência de uma reforma constitucional’ que abrisse caminho ‘às mudanças reclamadas pelo povo na estrutura econômica e no sistema político’ – posição legalista que Prestes apoiava. Prestes não fez nada no momento do golpe. Depois, se reuniu com membros do PCB em um apartamento de Botafogo”, disse Fico.
Sobre a afirmação acerca de suposta queima de documentos na embaixada soviética, Fico disse que ela se baseia em uma entrevista dada por Nicolai Mostovietz, ex-chefe do Departamento das Américas do Partido Comunista da União Soviética, trinta anos depois do golpe e da suposta queima que, aliás, ele não se presenciou, já que estava em Moscou.
“Ele deu essa entrevista com 81 anos. Ele diz que, na época do golpe, foi informado pelo embaixador Andrei Fomin de que, no dia 30, ele (embaixador) havia queimado ‘alguns documentos de arquivo, com medo de ataque’. Mostovietz respondeu dizendo que isso ‘era um absurdo’ porque ‘não tínhamos lá nenhum documento secreto, apenas papéis de trabalho sobre as relações diplomáticas e comerciais entre os dois países’”, lembrou Fico.
Na mesma entrevista, concedida à Folha de S. Paulo, Mostovietz também disse – o que não é explicado pela Secom – que a diplomacia soviética não sabia que o golpe contra Goulart iria ocorrer, o que trabalha contra a tese de que Prestes havia mobilizado “40 mil” militantes para defender Goulart.
O papel do Senado
Em uma terceira parte das mensagens que postou nas redes sociais, a Secom descreveu da seguinte forma a queda de Goulart: “Surgiram rumores de que o presidente partiria para o exterior e, em sessão extraordinária dia 2 de abril, o Congresso declarou vaga a Presidência da República. Avisado de que seria preso por tropas de Curitiba, Jango, então em Porto Alegre, fugiu para o Uruguai e lá pediu asilo”.
Para Heloisa Starling, é a parte mais “apavorante” das mensagens da Secom. “Não existia rumor de que Goulart partiria para o exterior. Ele estava em Porto Alegre, todo mundo sabia, porque ali tinha o apoio do governo do Estado e do III Exército, que era legalista, não queria o golpe. Ele saiu do Rio porque o lugar ficou inseguro, já que era a sede da conspiração. Mas permaneceu, portanto, no território nacional. Mesmo assim, na sessão secreta da madrugada do dia 2, o presidente do Senado, Auro Andrade, declara vaga a Presidência. A decisão dele e da Mesa não tem sustentação na Constituição e nas leis em vigor do país. Para encerrar a sessão, ele corta o som, desliga a luz do Congresso Nacional e vai embora.”
Carlos Fico lembra que, na sessão do dia 2, Auro Andrade fez ler uma mensagem enviada por um dos principais apoiadores de Goulart, então ministro-chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro (1922-1997), segundo o qual o presidente da República havia se deslocado para Porto Alegre a fim de resistir ao golpe.
“O senhor presidente da República incumbiu-me de comunicar a Vossa Excelência que, em virtude dos acontecimentos nacionais das últimas horas, para preservar de esbulho criminoso o mandato que o povo lhe conferiu, investindo-o na chefia do Poder Executivo, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul, onde se encontra à frente das tropas militares legalistas e no pleno exercício dos poderes constitucionais”, dizia a mensagem de Darcy.
Segundo Fico, Darcy pretendia, “exatamente, garantir que Jango estava em território nacional e que, portanto, não abandonara o governo”. “Assim, não havia ‘rumores’ de fuga para o exterior, mas comunicação oficial garantindo a presença do presidente em território nacional.”
“Auro já havia combinado com outras lideranças que declararia a vacância do cargo e foi exatamente o que fez, apesar dos protestos de alguns parlamentares do PTB, como Sérgio Magalhães, que tornaram a sessão bastante tumultuada, mas não conseguiram deter Auro”, disse Fico, observando que o então presidente do Senado havia tido, dois anos antes, desavenças com Goulart e agora “dava o troco”.
Depois da declaração da vacância do cargo da Presidência, alguns parlamentares pró-golpe foram ao Palácio do Planalto ainda na madrugada do dia 2 e, “com o palácio às escuras, foram até o gabinete presidencial e ‘empossaram’ o deputado Ranieri Mazzilli na Presidência da República”.
“O procedimento era tão vexatório que o terceiro-secretário da embaixada dos Estados Unidos, Robert Bentley, que tudo acompanhou, ficou em dúvida quando perguntado pelo sub-secretário de Estado, George W. Ball (que estava em Washington em ligação telefônica direta com Bentley por meio do único telefone que funcionava no Palácio do Planalto) se a cerimônia era legal”, disse o historiador da UFRJ.
Fico também observou que a afirmação da Secom de que Jango “então em Porto Alegre, fugiu para o Uruguai e lá pediu asilo” é “equivocada porque, no dia 4 de abril de 1964, após tentar permanecer no Brasil, Goulart – que estava na estância de Cinamomo no município de Itaqui (RS) – percebeu que não poderia permanecer no Brasil e foi para o Uruguai, onde recebeu asilo político”.
Para Heloisa Starling, a narrativa que a Secom apresenta sobre o golpe de 1964 “é uma estratégia”, para dar a entender que os militares “apareceram em cena de maneira legítima para colocar ordem, harmonia, para dizer que ‘infelizmente’ eles tiveram que intervir para restaurar a paz”.
“Essa narrativa procura dar sustentação à narrativa que se constrói hoje sobre a leitura deturpada do artigo 142 da Constituição. Essa narrativa traduz uma estratégia, ‘já que não podemos desmentir a história, então temos que falseá-la. Cria-se uma história falsa que parte sempre de fatos reais e a partir daí mente-se. Essa falsificação histórica serve para recolocar o papel da intervenção das Forças Armadas no Brasil’.”