A estrela do absintho
Oswald de Andrade
Chove. Verdadeira neurastenia da natureza, Serafim Ponte Grande
O mal foi ter eu medido o meu avanço sobre o cabresto metrificado e nacionalista de duas remotas alimárias – Bilac e Coelho Neto. O erro ter corrido na mesma pista inexistente.
Inaugurara o Rio aí por 16 ou 15. O que me fazia tomar o trem da Central e escrever em francês, era uma enroscada de paixão, mais que outra veleidade. Andava comigo pra cá pra lá, tresnoitado e escrofuloso, Guilherme de Almeida – quem diria? – a futura Marquesa de Santos do Pedro I navio!
O anarquismo da minha formação foi incorporado à estupidez letrada da semicolônia. Frequentei do repulsivo Goulart de Andrade ao glabro João do Rio, do bundudo Martins Fontes ao bestalhão Graça Aranha. Embarquei, sem dificuldade, na ala molhada das letras, onde esfuziava gordamente Emílio de Menezes.
A situação “revolucionária” desta bosta mental sul-americana, apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário – era o boêmio! As massas, ignoradas no território e como hoje, sob completa devassidão econômica dos políticos e dos ricos.
Os intelectuais brincando de roda. De vez em quando davam tiros entre rimas. O único sujeito que conhecia a questão social vinha a ser meu primo-torto domingos Ribeiro Filho, prestigiado do Café Papagaio. Com pouco dinheiro, mas fora do eixo revolucionário do mundo, ignorando o Manifesto Comunista e não querendo ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio.
Tinha feito uma viagem. Conhecera a Europa “pacífica” de 1912. Uma sincera amizade pela ralé notívaga da butte Montmartre, me confirmava na tendência carraspanal com que aqui, nos bars, a minha atrapalhada situação econômica protestava contra a sociedade feudal que pressentia. Enfim, eu tinha passado por Londres, de barba, sem perceber Karl Marx.
Dois palhaços da burguesia, um paranaense, outro internacional “le parate du lac Leman” me fizeram perder tempo: Emílio de Menezes e Blaise Cendrars. Fui com eles um palhaço de classe. Acoroçoado por expectativas, aplausos e quireras capitalistas, o meu ser literário atolou diversas vezes na trincheira social reacionária. Logicamente tinha que ficar católico.
A graça ilumina sempre os espólios fatos. Mas quando já estava ajoelhado (com Jean Cocteau!) ante a Virgem Maria e prestando atenção na Idade Média de São Tomás, um padre e um arcebispo me bateram a carteira herdada num meio-dia policiado de São Paulo afarista. Segurei-os a tempo pela batina. Mas humanamente descri. Dom Leme logo chamara para seu secretário particular a pivete principal da bandalheira.
Continuei na burguesia, de que mais que aliado, fui índice cretino, sentimental e poético. Ditei a moda Vieira para o Brasil Colonial no esperma aventureiro de um triestino, proletário de rei, alfaiate de Dom João 6º.
Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo. Servi à burguesia sem nela crer. Como o cortesão explorado cortava as roupas ridículas do Regente.
O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. Quem sabe se a alta do café não ia colocar a literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos custosos surrealismos imperialistas?
Eis porém que o parque industrial de São Paulo era um parque de transformação. Com matéria-prima importada. Às vezes originária do próprio solo nosso. Macunaíma.
A valorização do café foi uma operação imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isso tinha que ruir com as cornetas da crise. Como ruiu toda a literatura brasileira “de vanguarda”, provinciana e suspeita, quando não extremamente esgotada e reacionária. Ficou da minha, este livro. Um documento. Um gráfico. O brasileiro à-toa na maré alta da última etapa do capitalismo. Fanchono.
Oportunista e revoltoso. Conservador e sexual. Casado na polícia. Passando de pequeno-burguês e funcionário climático a dançarino e turista. Como solução, o nudismo transatlântico. No apogeu histórico da fortuna burguesa. Da fortuna mal-adquirida.
Publico-o no seu texto integral, terminado em 1928. Necrológico da burguesia. Epitáfio do que fui.
Enquanto os padres, de parceria sacrílega, em São Paulo com o professor Mário de Andrade e no Rio com o robusto Schmidt, cantam, nas últimas novenas repletas do Brasil: No céu, no céu / Com “sua” mãe estarei! Eu prefiro simplesmente me declarar enjoado de tudo. E possuído de uma única vontade. Ser pelo menos, casaca de ferro na Revolução Proletária.
O caminho a seguir é duro, os compromissos opostos são enormes, as taras e as hesitações maiores ainda.
Tarefa heroica para quem já foi Irmão do Santíssimo, dançou quadrilha em Minas e se fantasiou de turco a bordo.
Seja como for. Voltar para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para a frente. A história também.
Rio, fevereiro de 1933.
[In: Serafim Ponte Grande, Oswald de Andrade. São Paulo, Global (Coleção múltipla), 1987, p. 9-11- Acervo: Cristina Silveira]
O Oswald, é o grande escritor brasileiro, fez ponta cabeça a literatura nacional e, defendia o matriarcado, o que está correto, corretíssimo, se o universo masculino é de morte e ele sabia disso pela mãe que teve e as mulheres com quem casou.
Outra coisa, em sua última entrevista concedida Marcos Rey, o Oswald fala de Cornélio Penna e o que diz coloca a Vila de Utopia na vanguarda da incitação literária:
Oswald de Andrade — “Erra quem diz que o Brasil já possui uma grande literatura. Temos, quando muito, valores isolados. José Lins do Rego, Jorge Amado e poucos outros. Alguns tinham sido, mas não foram. Rachel de Queiroz apagou-se inteiramente, Armando Fontes não fez mais nada, e os outros felizmente não escreveram mais.
Marcos Rey — Mas há Cornélio Penna?
Oswald de Andrade — Você lembrou bem. É outro que só será redescoberto daqui a algumas décadas. Guarde o que estou dizendo. Mário de Andrade foi dos poucos que tomaram conhecimento dele, apesar dos reparos que lhe fez.”
Viva o Oswald! e Viva Vila de Utopia! que rememora os grandes da literatura.