A casa amarela de Cornélio Penna

Mural das crianças da Escola Municipal Antônio Camillo Alvim

Fotos: Reprodução/
Acervo das escolas

A Vila de Utopia oferece a crônica de Guilhermino Cesar às crianças das Escolas Municipais de Itabira com todo afeto do mundo

Cornélio Penna me parece, não era um inquieto, mas caminhou pra baixo e pra cima… Rio, Minas, São Paulo… Em Itabira, na Casa da Ponte, de sua avó paterna; em Niterói, em casa de seu irmão Agrícola Penna.

Na Praia de Botafogo viveu em sua primeira casa, porta do espólio de sua tia materna, a Baronesa de Paraná, Zeferina Marcondes Machado, (1859-1936). Era uma casa amarela que o progresso concretou.

Depois da derrota para o Progresso, o romancista pulou de casa em casa, em fuga do barulho das ruas a incomodar o itabirismo em seu espírito. Pra lá e pra cá, centenas de caixas com livros, obras de arte, antiguidades do Jirau, a mobília do 2º. Imperial, o leque de sândalo e a esperança de silêncio.

Cornélio Penna padeceu e morreu em sua casa no bairro das Laranjeiras a sonhar com uma casa na roça, uma grande casa num pequeno terreno, afastada do Progresso.

Em Itabira, no Rio, todas as casas em que viveu Cornélio Penna tiveram o triste destino de serem destruídas.

Por graça da história da literatura e das artes plásticas brasileiras, o “nosso Cornélio”, conforme Luís Camillo de Oliveira Netto, está vivo para sempre, e é uma realidade itabirana.

(Cristina Silveira, a Velha)

Instalação corneliana, obra das crianças da Escola Municipal Antonina Moreira

Cornélio, o de Itabira

Por Guilhermino Cesar

Era na Praia de Botafogo, perto do Morro da Viúva. No edifício mais novo do quarteirão, e de número 48, morava Marques Rebêlo. Na casa possivelmente mais antiga, cujo número não guardei, vivia Cornélio Penna.

O portão de entrada abria para um espaço cheio de folhagens, que contrastavam com o amarelo ocre da casa de dois andares, de aspecto feio, mas dignamente satisfeita do mau gosto em que se afogava.

Tudo se renovara em torno, mas a casa resistia, e de tão velha e solitária chamava a atenção dos passantes. Qualquer leitor mediamente culto de gazetas e revistas cariocas (O Jornal, Para Todos, Ilustração Brasileira), ao saber que ali morava o Penna, desenhista de muitos deles, descobriria aquela casa sem hesitações, tal a semelhança entre o exotismo dos desenhos e o da habitação de seu autor.

Arte inspirada na obra de Cornélio Penna. Uma realização das crianças da Escola Municipal Antonina Moreira

Os passageiros de ônibus que iam para Copacabana, se voltassem a cabeça para trás, ao terminar a Avenida da Ligação, perceberiam aquela construção antiquada e solitária, apequenada entre os arranha-céus festivos que começam a “monumentalizar a paisagem”.

Entre novas armações de cimento armado que se erguiam dominadoras, a casa de Cornélio Penna parecia encolhida de medo e frio. Quem não gostaria de decifrar o enigma que se ocultava por trás daquelas paredes esboreinadas.

Nas rodas de gente culta já se tornara famoso aquele recanto, depois da publicação de FRONTEIRA (1936). E uma tarde, Marques Rebêlo e eu organizamos uma expedição à casa amarela em companhia de nossas mulheres.

Inspirada por Cornélio Penna, a aluna Cibelly, da Escola Municipal Antônio Camillo Alvin fez arte

Para tornar mais picante a aventura inventamos coisas sobre as excentricidades de Cornélio Penna, os seus baús mineiros, os seus móveis aliados aos seus hábitos de solteirão e mil histórias assim, capazes de atrair a curiosidade de nossas companheiras.

Rebêlo, com a sua imaginação buliçosa, criou inclusive alguns fantasmas, com os quais – disse – vira Cornélio conversar de mano a mano, na maior intimidade. Uma das senhoras chegou a ter medo.

Advertido de nossa anunciada presença pelo cão de vigia, Cornélio veio abrir o portão de ferro, desengonçado e estreito, cuja chave custou a ceder. Móveis antigos, de todos os estilos, telas, cristais, louças, tapetes, tudo em profusão no primeiro piso, davam à sala de entrada um ar sombrio de museu.

No meio de todas aquelas engenhocas não devia haver lugar para intimidades, para o aconchego de uma boa prosa, tanto mais quanto a pouca luz (Cornélio se queixava dos olhos, que não lhe permitiam mais desenhar) tornava indistintos os objetos, criando uma atmosfera inquietante.

As senhoras deram um suspiro de alivio quando ele nos convidou para subirmos ao segundo andar. Lá em cima, numa sala espaçosa, sentamo-nos perto de um móvel em reparo (mesa, escrivaninha, armário, que sei eu), de estilo e utilidade indefinidos para nossos conhecimentos.

No soalho, uma lata de cola, estopa e pequenos fragmentos de marfim. Cornélio desculpou-se; passara o dia a reparar aquele móvel, peça desgarrada da mobília do rei Faiçal, do Irã, aliado dos ingleses na primeira guerra.

A curiosidade de nossas companheiras passou-se toda para outros móveis igualmente exóticos, enquanto eu me deixava prender pelos desenhos do próprio Cornélio. De um deles, colocado perto da escada, não me esqueci até hoje.

Arte corneliana das crianças da Escola Municipal Antonina Moreira

Representava as “beatas de Itabira”, três velhinhas famosas, solteironas que viviam juntas e frequentaram, anos a fio, a missa da alva igreja matriz. A mais velha, morena lá estava também no quadro entre as outras duas, já um simples fantasma a caminho da missa. Embuçadas em fichus de seda preta, haviam se imobilizada no tempo, fieis ao clã familiar, à terra nativa, aos amores frustrados.

Conversamos de tudo. Uma conversa lenta, ao bom estilo das velhas cidades de Minas, onde o tempo se recusa a tornar urgentes as ambições.

A serenidade do dono da casa, o calor humano que infundia à conversa, a doçura de sua voz, de seus gestos, as notas de introspecção que arrancava de qualquer comentário, mesmo os mais jocosos de meu companheiro, a tranquilidade exterior de sua vida solitária, exerceram sobre nós, Rebêlo e eu, que somos um pouco agitados, um efeito sedativo.

Saí dali, para a noite velha, mais amigo de Cornélio, mais ligado afetivamente à sua literatura essencial, feita para dizer coisas profundamente vividas, sentidas e amadas. Os desenhos, a casa e os romances de Cornélio Penna, fluminense cedo transplantado para Minas, constituem, em bloco, um capitulo da vida literária brasileira.

Nenhum mineiro de nascimento conseguiu captar, no romance introspectivo, e com maior acuidade, os momentos de “defesa” da alma obscura dos burgos montanheses, as suas ambições recalcadas, as vaidades sem objeto definido, os artigos daquelas criaturas arestosas, de pedra-ferro, resistentes à adversidade como impermeáveis aos entusiasmos fáceis.

Gente imbricada, vivendo em caverna os paroxismos, gente de Santa Barbara, de Mariana, de Ouro Preto, de Itabira, a velha. Gente envergonhada de viver no século XX, em plena moldura do século XVIII, foi a sua humanidade a matéria que Cornélio Penna, retendo a sua experiencia de menino, fixou para sempre no romance.

Fora dessa ambiência moral, cristalizada no tempo e medida pelo sino das igrejas, nada mais existiu de fundamental para o autor de Dois Romances de Nico Horta. Ele deu vida aos seres taciturnos que não fazem perguntas ostensivas à vida, porque se contentam com o próprio ato de viver, fruindo o prazer e a dor com igual volúpia, a triste volúpia de saberem que a noite nos comanda, estátuas carregadas de limo.

Quando li a notícia da morte de Cornélio Penna, meu pensamento voou para a casa de Botafogo. Sim, a casa não mais existe, mas foi ali, entre imagens de Itabira, nos móveis aos retratos e nas roupas, foi ali que o encontrei para a amizade distante, mas certa.

A casa amarela de Botafogo não deve ser esquecida na biografia do escritor. Um homem modesto construiu ali a melhor parte de sua grande obra, Chão de Minas entre os morros cariocas, preservou-lhe a mineiridade adquirida e deu força ao artista para ser livre e original.

[Diário de Notícias (RS), 16/3/1958. BN-Rio]

 

 

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1 Comentário

  1. Itabira e seus filhos geniais. Fico me perguntando se vai conseguir recuperar do passado o brilhantismo do pensamento ou se vai continuar naufragando no rejeito da Vale, que de nada vale.
    Viva Cornélio Penna, o de Itabira.

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