“A aplicação prática da lei de drogas é uma usina de injustiças”, avalia Justa
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Análise é de Cristiano Maronna, diretor do Justa, sobre decisão do STF há um ano em torno da descriminalização do porte de drogas para uso próprio, durante seminário do “Repensando a Guerra às Drogas”, que aconteceu de 1 a 3 de outubro, em Belo Horizonte (MG)
Belo Horizonte – Apesar do avanço trazido pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) há pouco mais de um ano em torno da descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, “a aplicação prática da lei de drogas é uma usina de injustiças”. A avaliação é de Cristiano Maronna, diretor do Justa, organização que atua no campo da economia política da justiça e que nesta semana promoveu em Belo Horizonte a 3ª edição do seminário “Repensando a Guerra às Drogas”.
Para Maronna, “muitas pessoas, que são meros usuários de drogas, [ainda] são condenadas como traficantes, mostrando a fragilidade da comprovação da finalidade mercantil, que muitas vezes justifica condenações por tráfico de drogas”. Maronna destaca que isso se dá porque o STF “pecou” ao definir que tal prova de finalidade mercantil pode se dar apenas a partir do testemunho policial, o que demandaria melhorias nessa definição por parte do tribunal.
O Justa realizou o seminário “Repensando a Guerra às Drogas” em parceria com a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) e o coletivo Repensando a Guerra às Drogas, composto por membros do Ministério Público, Magistratura e Defensoria Pública de todo o país. O encontro aconteceu de 1 a 3 de outubro em Belo Horizonte (MG). A proposta do evento foi estabelecer um diálogo plural a fim de definir novos rumos para os modelos regulatórios em torno das drogas no país.
Para Maronna, que foi um dos anfitriões do evento na capital mineira, é preciso rever a atual política de drogas. “Queremos construir uma política de drogas baseada em evidências científicas porque a que temos contraria toda e qualquer evidência científica”.
Discriminação e drogas
O seminário contou com a participação do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sebastião Reis. Durante sua apresentação, ele destacou dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostrando que 68% das pessoas privadas de liberdade no Brasil são negras, enquanto 63,1% das vítimas de roubos e furtos de celular também são negras. A partir dos dados, Reis analisou os desafios para mudar esse cenário e apontou, por exemplo, os critérios para abordagens e apreensões.
“A questão da justa causa para uma abordagem pessoal e apreensão tem caráter subjetivo”, afirmou. “O Conselho Nacional de Justiça sabe dessa necessidade [de equidade na proteção dos direitos fundamentais] e tem avançado, fez o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, uma iniciativa alinhada às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já reconheceu que a questão racial deve ser considerada nos julgamentos dos processos”.
Segundo ele, tal movimento tem por objetivo reduzir o racismo estrutural, institucional e as formas de discriminação que partem deles. “Material nós temos, a questão é conseguir que isso se torne realidade. Temos legislação, orientações do CNJ e precedentes dos tribunais. O problema é convencer e fazer uma tentativa de mudança de política pública. O que a academia e os tribunais sustentam não repercute em nosso dia a dia”, conclui.
Cristina Labarrère, promotora de justiça do Ministério Público de Minas Gerais e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas, também fez uma avaliação de como a política de drogas brasileira esbarra em premissas discriminatórias. “Invariavelmente as políticas proibicionistas têm o objetivo excludente. São motivados por racismo, xenofobia, fundamentalismo religioso e não tem nada a ver com proteção à saúde, que é sempre o objetivo declarado, mas não é o objetivo real.”, afirma.
A professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ludmila Ribeiro, apresentou dados de pesquisa do IPEA, demonstrando quais são os gargalos do sistema de justiça hoje em torno do combate às drogas, resultando em superencarceramento, especialmente de mulheres e negros. Segundo os dados, uma prisão preventiva amplia as chances de uma condenação, independente de demais aspectos em torno do caso.
“A prisão preventiva é a grande antecipação do julgamento, enquanto a diversidade de drogas não interfere na chance de condenação. Não se está julgando sobre o comércio de drogas, mas sobre elementos de gênero e raça, relacionados especialmente sobre a fé pública policial. Apenas o depoimento policial está mais associado à condenação. A pior desvantagem que alguém pode ter é ser presa em flagrante por um policial, sem nenhum tipo de informação. Sendo mulher e negra, vai ser condenada de forma muito definitiva”.
Prevenção e redução de danos
Segundo Camila dos Santos, integrante da Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos, o reconhecimento tardio do uso de drogas como tema de saúde pública fomentou uma série de estigmas e dificultou o tratamento para os usuários no Brasil. “O principal fracasso concreto da política atual de drogas, no que condiz ao tratamento, com certeza é o avanço e fortalecimento das comunidades terapêuticas, onde há violações sistemáticas de direitos humanos, sobretudo com incentivo financeiro de recursos públicos, em detrimento de estratégias de cuidado e liberdade pautadas pela redução de danos”, explica.
Para o defensor público Flávio Lellis, da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), o Brasil está perdendo a guerra às drogas há 50 anos, e a proposta de descriminalização nada mais seria do que o reconhecimento de uma realidade que já se impõe ao cotidiano brasileiro. “A verdade é que as drogas estão liberadas, concentradas nas mãos do crime organizado – e fora, portanto, do crivo do Estado para avaliação de qualidade da droga comercializada e de quem a está comprando, um público que, muitas vezes, envolve crianças, adolescentes e dependentes”, afirma.
A regulação de substâncias seria, segundo Lellis, uma importante mudança de paradigma, afastando-se do caráter repressivo da abordagem atual e concentrando esforços na prevenção e redução de danos.
Um novo capítulo
Durante o evento, o Justa e o coletivo Repensando a Guerra às Drogas lançaram, ainda, o livro de coletâneas de artigos “Repensando a Guerra às Drogas”, pela Juruá Editora. A obra reúne reflexões de juízes, promotores, defensores, advogados e pesquisadores, apontando caminhos para uma política mais justa, eficiente e baseada em direitos humanos.
Sobre o Justa
O Justa é um centro de pesquisa, design estratégico e incidência que atua no campo da economia política da justiça, analisando a gestão e o financiamento judicial. O objetivo da organização é mostrar como a relação do sistema de justiça com os outros Poderes e com a economia afeta nossa experiência democrática e a vida de milhões de pessoas.
O evento pode ser acessado pelos links: https://www.youtube.com/watch?v=5UrtMu0o0Zw e https://www.youtube.com/live/u7IxTm-1_8E









