Usucapião por abandono de lar

Por Flávia Alvim*

O Código Civil de 2002 alterou o centro gravitacional das relações jurídicas e nos conduziu a um movimento que muitos autores chamam de “despatrimonialização do direito”. A pessoa humana reage aos interesses patrimoniais alcançando garantias fundamentais, existenciais. Podemos perceber que houve a Constitucionalização do Direito Civil e esta nova e necessária interpretação continuou crescendo e refletindo, entre outros, nas famílias, nas obrigações e nos direitos reais.

Com a Constituição no centro do ordenamento jurídico, seus institutos vão se redefinindo a partir dos pilares da legalidade constitucional, quais sejam: dignidade humana, solidariedade social e igualdade material. As situações jurídicas extra-patrimoniais, os chamados atributos do ser humano, são, hoje, tutelados, o que nos permite compreender que a posse é uma das formas que o ser humano tem de promover esses atributos que lhes são naturais.

Consequência disto é o fato social concreto ingressar na tutela jurídica amparado por sua função social, que além de o reconhecer o fundamenta. A posse qualificada (mansa, pacífica, ininterrupta, por período de tempo previsto em lei, sobre bem apropriável, com animus domini e boa-fé) é causa legal de aquisição da propriedade e no meio conjugal não é diferente, visando alcançar interesses existenciais, econômicos e sociais.

A usucapião, por exercício da posse qualificada é, como já sabemos, modo originário de aquisição de propriedade e outros direitos reais. A usucapião por abandono de lar está prevista no artigo 1240-A do Código Civil e garante: “Aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde de que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.” Vale lembrar, como acrescenta o parágrafo primeiro do mesmo artigo que o direito previsto não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Resta evidente o cunho social do artigo, introduzido pela Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, que mesmo não previsto de forma explícita na Constituição, acompanha a interpretação do artigo 183 da Carta Magna. Assim como o faz o artigo 1240 do Código Civil, forma de usucapião especial constitucionalmente garantida, podemos compreender o artigo 1240-A como forma de usucapião especial específica, pois se apresenta para beneficiar aquele que passa por situação especial (descrita no artigo 1240 como usucapião especial urbano) e específica por seguir as orientações deste, mas, ainda assim, conseguir, por discriminação positiva, privilegiar aquele que permanece com a família e suporta as despesas do lar, beneficiando-o com período necessário de tempo reduzido para reclamar e poder alcançar a propriedade plena do imóvel conjugal.

Esta modalidade de usucapião anda em conjunto com o moderno direito das famílias, pois a ideia é justamente a constitucionalização das garantias humanas fundamentais, sendo contraditório excluir ou moldar os formatos, os laços e possibilidades de união e constituição familiar.

Em relação ao conceito de abandono de lar como condição, requisito essencial para a qualificação deste tipo específico de posse para fins de usucapião, deve-se ter cautela na interpretação, como orienta o Enunciado 499, CJF. Há de se verificar, para se qualificar abandono, se ao afastamento do lar conjugal, simultaneamente, houve descumprimento de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar.

Para justificar a perda da propriedade e alteração de regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião, aquele que permaneceu na residência familiar deve ter suportado onerosa e desigualmente as despesas para manutenção da família e do próprio imóvel, restando durante este tempo como único responsável.

Conclui-se, desta forma, que a função social da posse é fruto da constitucionalização do direito civil, trazendo a tona problemas sociais que perduravam indefinidamente, provocando o enfrentamento de fatos concretos não só pelo judiciário, como por toda a sociedade.

No caso específico da usucapião por abandono de lar, o instituto foi positivado em nosso ordenamento afim de criar mecanismos legais para que as famílias que foram abandonadas possam usufruir de forma plena do imóvel ou mesmo colocá-lo à venda em caso de necessidade, legitimando a posse como meio ou mais uma das formas de o ser humano promover seus atributos.

*Flávia Alvim é advogada e professora de Filosofia

 

 

 

 

Posts Similares

1 Comentário

  1. Excelente Artigo! Importante lembrar que o usucapião por abandono de lar conjugal, requisito do ‘abandono do lar’ deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel, somando à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *