Passos na Areia

Mauro Andrade Moura

Nem a planta do teu pé achará descanso…
Deuteronômio 28:64.65

Do livro “Passos na Areia”, da autora lisboeta (poderia dizer alfacinha) Maria Júlia Fernandes, que versa a respeito dos 500 anos passados sobre a expulsão dos judeus de Portugal, recebemos alguns ensinamentos para o melhor entendimento do nosso cotidiano bem aqui no interior das Minas Gerais.

Na página 12 temos esta preciosa informação a respeito da utilização da areia dentro das casas de nossos avós, em comparação com o trecho do citado livro:

Capa do livro: lápide que pertenceu à antiga sinagoga de Belmonte de cujas ruínas foi retirada em 1910 pelo arqueólogo Francisco Tavares Proença Júnior. Samuel Schwartz atribuiu-lhe a data de 1297 e fixou a sua leitura e tradução. Inscrição: E Adonai está no seu templo sagrado e merece perante Ele toda a terra

-“A Sinagoga “Esperança de Israel” (Mikveh Israel) foi construída no século XVIII à imagem de um outro templo deixado na Holanda, essa Jerusalém da salvação dos povos perseguidos da Sefarad. 

Mas algo torna esta Sinagoga e esta comunidade um elo mais na cadeia que liga gestos, hábitos e sofrimentos velhos de gente diversa com um passado comum: o chão do templo está sempre coberto de areia, embora nada na Lei obrigue a este preceito.

A justificativa para uma tal atitude faz recuar a tempos muito antigos, a lugares há muito esquecidos. Quando os judeus foram obrigados à conversão na Península Ibérica (1492 e 1496) do século XV ficou-lhes um gesto, estratagema de sobrevivente, que carregaram na fuga. Para enganar espiões que deviam dar fé dos erros dos cristãos novos habituaram-se a lançar areia no chão das salas, onde, em segredo, rezavam a Adonai à revelia dos vizinhos desconfiados de clérigos zelosos.”

Já agora, nas sempre presentes e atuais crônicas e poemas do nosso poeta Carlos Drummond de Andrade, temos o mesmo citando em seu poema “Casa” o uso da areia fina lavada nas salas de visitas, utilizada nos sobrados dos primos e primas e também na própria casa paterna dele.

Dizem que essa areia servia para ajudar a retirar a sujeira que vinha no solado dos calçados e principalmente das botas de quem chegava das fazendas. Transformação de um costume secular de nossos antepassados judeus sefaraditas no cotidiano das casas nos finais do século XIX até meados do XX.

Será só pela limpeza dos calçados mesmo?

E, novamente entre primos e primas, Drummond nos apresenta outro costume familiar, o da endogamia, ou seja, o casamento dentro da própria família no poema “Romance de Primas e Primos”, publicado no Jornal do Brasil, de 15/04/1978:

 

“A prima nasce para o primo.

O casamento foi marcado

no ato mesmo da concepção.

Entre os primos, é eleito o primo

que melhor convém ao tratado.

Sem exclusão dos demais primos

perfilados todos à espera

de chamada se a vida muda.

 

Assim nascem todas as primas,

destinadas a matrimônio

do outro lado da mesma rua.

Os sobradões se comunicam

em passarela de interesses

ea vasta empresa de família

que abrange bois, terras, apólices,

paióis de milhos e tradição.

 

Serão multíparas as primas

a primos árdegos unidas.

À noite, no maior recato,

apagado o lampião, arquejos

não consumados nas gargantas,

contribuirão para a grandeza

do eterno tronco familial,

bem mais valioso que as pessoas.

 

De filhos, netos e bisnetos

o futuro já foi traçado

em firme letras de escritura:

o país serrano pertença

a primos, primas e mais primos

encomendados com sapiência

pelo conselho soberano

de tios primos entre si.

 

Mas um dia as primas se enervam

de nascer assim programadas

para um fim geral sem prazer.

Já os primos se desencantam

desta sorte a que estão jungidos.

 

Desimpedidos os primos

de escolher para seu gosto,

cada qual atira seus olhos

ao rumo sem fim da aventura,

e de seculares raízes,

riquezas, títulos e taras,

nada resta… “

(extraído do livro Os Antepassados – II volume, Pedro Maciel Vidigal, páginas 33 e 34 – ano 1980)

Novamente recorrendo ao livro “Passos na Areia”, acima citado, temos também essa preciosa informação na página 116 a respeito de toda essa endogamia presente em nosso meio em comparação ao poema Romance de rimos e Primas:

“o casamento envolvia grandes conversações familiares sobre a questão do dote a dar a noiva e era combinado sempre dentro do grupo familiar. Uma endogamia explicada pela necessidade de preservar os segredos que envolviam as várias cerimônias religiosas e pelo receio de que os filhos nascidos dessa união pudessem ser educados na fé católica e obrigados a frequentar a Igreja.”  

Não por mero acaso, minhas avós eram primas, os pais do meu avô materno eram primos-primeiro (direto), os avós materno dele eram primos-irmãos e todos os bisavós eram primos entre si.

Para quem quiser apreciar este livro, que se mostra muito interessante ao nos apresentar um percurso das antigas judiarias e sinagogas em Portugal:

“Passos na Areia”

autora Maria Júlia Fernandes

edição da Contexto, Editora, 1996.

Depósito legal 103 853/96

ISBN 972-575-203-1

151 páginas

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9 Comentários

  1. Oi Mauro.

    Muito lindo seu artigo sobre o livro “passos na areia”.
    Interessante também o poema Romance entre primos e primas.
    Meus avós “de Figueiredo” eram primos.
    Na minha adolescência também quase tive um primo “Coutinho” como marido. Tive que me rebelar contra.
    Mais esta prática não é somente dos Judeus. Tem muitas outras culturas que até hoje “negociam” os casamentos dos filhos e filhas com interesses em comum.
    Abraços e bom final de semana.

    1. Bom dia, Inês.

      Aqui, nessa judiaria que nasci e vivo, o uso recorrente do casamento entre primos e primas é costume secular e com origem certa conforme nos apresenta essa contraposição entre o livro de história e o poema do poeta maior.
      Sei que esse costume do casamento há em outras culturas, mas aqui nesse interior de Minas Gerais, as pessoas passaram a dizer que isto era para não dividir o patrimônio, ficar sempre dentro da família.
      É isto, mas vai sempre além disto, pois na essência essa endogamia é para não se perder o costume familiar.

      Grato pela leitura,
      Mauro

    1. Bom dia, primo Paulo.

      Comprei o livro Passos na Areia achando que era a respeito do rastro das longas caminhadas decorrentes das diásporas judaicas, mas quando li que era a “areia fina lavada na sala de visita”, conforme versa o nosso poeta maior, sinceramente, não me contive e pus logo a memória a trabalhar e a mão a escrever fazendo essa comparação entre o fato histórico e a poesia.
      Talvez você não saiba, mas era costume da nossa família e de muitas outras aqui em Itabira samear areia fina pela casa.

      Grato pela leitura,
      Mauro

    1. Bom dia, Norberto.

      Sim, é um ensaio do que vou vendo no mundo fora através dos livros de história e comparando com o nosso viver aqui em Itabira.

      Grato pela leitura,
      Mauro

  2. Parabéns, Mauro, pois trazer à memória historia e fatos ainda não contados nos confirma ainda mais nossa identidade de nossos ancestrais. Tentaram apaga-la, mas a escolha e o chamado divino prevaleceram e sempre prevalecerá a favor de Seu povo escolhido.
    Marcelo Miranda Guimaraes
    Museu da Inquisição de BH

  3. Profundo conhecimento da história, raro senso de beleza e reverente homenagem aos nossos antepassados ; tudo isso reunido em um artigo tão bem escrito .
    Obrigado pelo prazer dessa leitura!

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