“Ao mesmo bruxo”
Arte: Divulgação
Por Ricardo Novais**

O Bule – Chego com custo num horizonte longínquo, tão sutil, tão sintomático… Quero logo ver todas as paisagens de outro prumo; assim foi; tenho o ânimo insaciável, sigo então pela mesma montanha; é longo o alcance de visão… Vê-se, ao fundo, um mar espelhado que parece azul, mas é o portal de um mundo paralelo.
Percebo que é lá que está um bruxo, de aspecto sóbrio, paciente, cônscio, embora nada revele no olhar; de certo vindo daquela certa casa da Rua Cosme Velho, o mesmo homem que tanto causou impressão em Drummond; este outro que tanto provocou alento em minha velha avó da pacata cidade de Itabira.
O bruxo nada fala, tem a cara dos incrédulos e mantém um sorrisinho buliçoso no canto da boca; irritante e natural. Não me aborreço de logo; reverencio aquele diabo, mas desconfio tanto dele… O seu aceno é apropriado, refinado; ele limpa o pencenê, novinho (?); calmo, ainda com irreverente e leve movimento de contração à face, finalmente, pronuncia-se à meia-voz: “Não se acanhes, desgraçado viajante; se todos os contrastes estão no homem…”.
Não tenho palavra, lembro-me daqueles versos de Drummond conjecturando a genealogia moral dos Lobo Neves e os misteriosos olhares das várias mulheres que moraram num paço logo adiante; aliado a isto, rememoro o anemicíssimo José Dias, a força movida por combustível furioso e sinistro de Vilela, a rivalidade latente do mesmo germe de decreto de Pedro e Paulo, a agudeza quase nietzschiana da Cabocla do Castello e de Marcela, os devaneios sadios de Quincas e os cientificismo doentio de doutor Bacamarte, tudo na forma de lampejos de imaginação do Conselheiro Ayres.
Sei que este homem que encontro em tão funesta montanha é um mestre, sei também que ele é cruel; sem pestanejar este velho bruxo traçará magistralmente toda minha personalidade afetada e me reduzirá a fraco verme humano.
Por certo que calculará minha dificuldade de finanças e meus vícios desesperadores, onde nunca arranjarei tempo suficiente para tragá-los. Dirá, em conclusão, que embora ainda muito moço eu já tenha vivido minha vida inteira e não há muito mais que isto; apenas o resto, e o resto é o resto.
Vem o coveiro, acho-o sorumbático, o bruxo dirige-se a ele, dá outro sorrisinho lançando uma chama irônica, quase hipócrita, e joga a reverência:
__ Caro Ezequiel, que faz?
__ Não sei; não sou mais um jovenzinho, nem velho… Sou pai de família! – exclama com um tanto de desprezo, próprio de quem carrega dor intensa desde cedo pela ausência de seus progenitores.
__ Teus filhos têm orgulho de quê?
__ De meu sucesso.
__ Mas eles não têm nenhuma decepção contigo?
__ Claro que sim! Peço ao bom Deus que lhes conservem bem de saúde e que sejam promissoras suas carreiras; sabe, são doutores, um de ciências jurídicas e o outro salva toda gente; mas nem sempre podem ter tudo…
– E qual a decepção afinal?
– Ora, qual; de terem nascido no Brasil.
Começa a escurecer, nem toda a paisagem do mundo devolveria luz àquela colina; e, sem o clarividente sol, um cambaleante pombo cinza sobrevoa por sobre os homens, e distraem-nos à contemplação do São João Batista.
De repente, o bruxo foi-se primeiro, afastando-se sem dizer palavra, apenas o gestual denotava a metalinguagem de mármore, tão fria como as maçanetas das portas que zombam daqueles que tentam, em vão, entrar às casas, mas que, ao mesmo tempo, revela, dissimuladamente, toda a sutileza e sabor da vida.
O coveiro ainda me acompanhou até o portão da necrópole, depois também sumiu. Mas eu já estava a salvo.
* Do livro de contos Perfumes da Pátria
**Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo tempo; o último gole é sempre a saideira.









