De Bom Jesus do Amparo a BH: o Brasil que violenta e se justifica em sua ilógica social e simbólica
Em destaque, o delegado João Teixeira durante coletiva de imprensa
Foto: Cosme Ferreira/ Portal Uai
Dois crimes brutais, hediondos: apesar da forte reação ao assassinato do gari na capital mineira, e também no caso de estupro de menor, os dois crimes revelam como o Brasil, em muitos casos, normaliza a violência e constrói justificativas que desafiam qualquer lógica humana
Dois assassinatos brutais, um no interior, outro na capital, escancaram como, mesmo diante de reações firmes, a violência segue encontrando espaço para se repetir e ser explicada por motivos que desafiam a razão
Da redação – Há algo de podre no reino do Brasil. E não é só o lixo que revelam desperdícios e que os garis recolhem nos dias frios de Belo Horizonte. É o lixo humano, moral, ético – aquele que se acumula nos porões da alma nacional e, vez ou outra, escorre pelas manchetes como sangue fresco.
Na mesma semana em que um pai foi preso por estuprar a própria filha desde os 13 anos, em Bom Jesus do Amparo, outro homem executivo, cristão, marido de delegada, frequentador de academia de luxo, assassinou a sangue frio um gari que apenas fazia seu trabalho. Dois crimes hediondos, dois mundos aparentemente distintos, mas que se encontram no mesmo abismo: o da desumanização.
Psicologia da perversão e da posse
O caso do pai abusador é um mergulho nauseante na psicopatia doméstica. Segundo o delegado de Itabira, João Teixeira, o homem tratava a filha como “sua mulher”. Agia com ciúmes, agredia, manipulava e ameaçava matar toda a família caso fosse denunciado.
A perversão sexual se misturava à zoofilia, à violência física e à tentativa de encobrir os crimes com uma encenação grotesca de namoro entre a filha e um rapaz da cidade.
Não é apenas um caso de abuso. É o colapso completo da função paterna, da moralidade, da empatia. O sujeito não via a filha como pessoa, mas como extensão de seus desejos. Um objeto. Um corpo. Uma propriedade.
O ódio de classe e a arma da autoridade

Enquanto isso, em Belo Horizonte, René da Silva Nogueira Júnior, empresário de 47 anos com “currículo de Harvard” e casado com a delegada Ana Paula Balbino Nogueira, não quis esperar o caminhão de lixo sair do caminho. Discutiu com a motorista, disse que ia atirar nela, desceu armado e atirou no gari Laudemir de Souza Fernandes, de 44 anos, que tentava acalmar a situação. Laudemir morreu no hospital.
René não tinha posse legal da arma. O revólver calibre 380 que usou pertencia à sua esposa, delegada da Polícia Civil de Minas Gerais – e estava guardado no escritório do apartamento do casal. A Corregedoria da Polícia Civil instaurou um procedimento disciplinar para investigar se houve omissão de cautela por parte da delegada.
Após o crime, René voltou para casa, trocou de roupa, passeou com os cachorros. E foi treinar em uma academia de luxo. Foi lá que a polícia o prendeu, horas depois, sem demonstrar qualquer sinal de arrependimento ou nervosismo.
Nas redes sociais, René se apresenta como christian, husband, father, and patriot (cristão, marido, pai e patriota). Um homem que, segundo sua própria lógica simbólica, defende a família, a moral, a pátria e a propriedade. Mas que, diante de um suposto incômodo no trânsito, não hesitou em tirar a vida de um pai trabalhador, negro e pobre, que apenas cumpria sua função como todo cidadão do bem.
Reflexos de uma sociedade em crise
Ambos os casos revelam algo maior: uma sociedade em colapso simbólico, onde os vínculos humanos se desfazem e o outro deixa de ser sujeito para se tornar objeto. O pai que abusa da filha e o executivo que mata o gari compartilham mais do que a monstruosidade dos atos — compartilham uma lógica perversa de dominação, de posse, de negação da alteridade. É a recusa em querer o bem ao outro, seja ele quem for.
Para quem age assim, o outro não é um ser, mas um nada. Um corpo disponível, descartável, que existe apenas para servir ou ser eliminado. É o triunfo da desumanização travestida de normalidade.
Vivemos tempos em que o discurso da moral e dos bons costumes é usado como escudo para justificar violências. O bolsonarista que matou um petista em Foz do Iguaçu por causa de uma homenagem a Lula é outro exemplo dessa lógica perversa: o outro não é adversário, é inimigo. E o inimigo não merece viver.
Sociologia da barbárie
O sociólogo Zygmunt Bauman dizia que a modernidade líquida dissolveu os vínculos humanos. Mas no Brasil, parece que estamos perdendo a própria noção de humanidade. A desigualdade extrema, o culto à força, a banalização da violência e a polarização política criaram um caldo onde monstros se sentem à vontade.
O pai abusador não é só um monstro individual. Ele é produto de uma cultura que silencia mulheres, que erotiza meninas, que normaliza o controle masculino. O executivo assassino não é só um psicopata de terno. Ele é reflexo de uma elite que despreza o pobre, que se irrita com o caminhão de lixo, mas não com a mentira e com os fake news que alimentam toda essa barbárie.
Sem cura para os traumas
A polícia pode prender, a Justiça punir. A mídia pode denunciar. Mas quem vai curar os traumas? Quem vai reconstruir os laços? Quem vai ensinar que amar a família não é controlar, que ser cristão não é matar, que ser cidadão não é humilhar?
O Brasil precisa olhar para si com coragem. Porque a barbárie não está só nos becos escuros. Ela está nos condomínios de luxo, nas igrejas, nas redes sociais. E enquanto fingirmos que é exceção, ela continuará sendo regra, como reflexo de uma sociedade em crise.
Fontes: Portal Uai/Itabira Notícias, Estado de Minas e O Tempo.