Declaração de Insolvência
No destaque, o escritor Cornélio Penna, que principalmente viveu em Itabira
Foto: Reprodução/ Pesquisa Cristina Silveira
Cornélio Penna
Pensei em fazer mesmo uma crônica de arte, esquecido de que não posso generalizar, porque o meu próprio caso me preocupa de forma obsedante, e é só quando me sinto muito cansado, que ponho de parte as interrogações irrespondíveis, ou de resolução indecisa, que me acompanham como más amigas e então é impossível ver o que se passa com os outros, pois já gastei todos os meus poucos recursos em me examinar, em comparar, e só consigo fazer surgir novas interrogações, que se interrogam elas próprias, entre si, ansiosamente, sem esperar as respostas, tão grande é a sua impaciência.
Mas, a gente acha sempre uma explicação para o egoísmo, e encontrei, para o meu, a de que, no Brasil, a arte é sobretudo um caso pessoal, e nós precisamos primeiro da formação de artistas, mesmo que sejam cegos e surdos em nosso país, tão ruidoso e tão claro, para depois descobrir-se um nexo entre eles, e nascer uma vaga e confusa personalidade coletiva, que poderá ser estudada.
Foi compreendendo melhor isso, que outros, mais felizes, começaram do princípio, e foram buscar a nossa infância selvagem, aceitando com alegria o ponto de partida. Surgem daí as minhas primeiras dúvidas e perplexidades, e parece-me que muitos estão no mesmo beco sem saída, e, como eu, não encontram um pouco de verdade, nem uma inteligência diferente e simpática, que nos esclareça, aconselhando-nos outros caminhos, para que, espreitando o que se passa mais longe, ao lado e para trás, possamos enfim surgir o nosso, para a frente, teimosamente, sem inveja e sem curiosidade inútil.
Muitas vezes, em minha miséria, procurei esse apoio negativo, e só encontrei quem procurasse, por sua vez, um pintor-cobaia, ou um pintor-tabu; aqueles que pintam as ideias de seu grupo, ou aqueles que têm a propriedade exclusiva da seção de pintura, também de seu grupo.
Ora, não posso aceitar, nem compreender, sem rir, uma e outra dessas atitudes, e tive que dobrar-me sobre mim mesmo, em uma luta estéril e sem glória, porque o vencedor e o vencido sou eu mesmo, e ao mesmo tempo. E daí o não poder escrever nunca sobre arte, porque, em vez de me acudirem afirmações e doutrinas, brotam em mim, atropelando-se umas às outras, perguntas e dúvidas, criadas pela minha educação literária, monstruosa e vulgar.
Uma vez que o nosso adiantamento literário, as nossas livrarias e os nossos literatos, pelo menos em um pequeno agrupamento à parte, são muito mais interessantes, completos e avançados, como é natural, do que o nosso adiantamento artístico, as nossas galerias e os nossos artistas, dispersos e isolados moralmente, todo aquele que deseja conhecer e estudar, só acha diante de si livros e teorias, e as viagens que faz, apressadas e como um coroamento do que já conseguiu, são antes um novo elemento de confusão e desvirtuamento.
Quem, como eu, criado no respeito da literatura, dominadora e único refinamento do brasileiro, teve a energia de se conter durante muitos anos, à espera do momento de poder servir-se da pintura como um meio de expressão literária, verifica com tristeza e com vergonha que perdeu a sua vida, e tudo que se achava em suas mãos, construindo apenas, grade por grade, a sua própria e risível prisão.
Ou voltarmos para trás, destruindo e despedaçando toda a defeituosa armadura que nos envolve, e isso nunca poderá ser sincero e sadio, ou prosseguir, encerrando-se secamente em uma loucura consciente e absurda, também pouco sincera. Esse é o primeiro contato com o exterior. E outros problemas que seguem mais altos e mais fundos, cuja inquietação surda nos avisa de que a luta será mais demorada?
Mas eu tenho medo. É por isso que já teria feito esta declaração de insolvência, há três ou quatro anos, se ela interessasse a alguém.
[A Ordem (RJ), junho de 1929. Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]