Nós, os Garrucheiros
Foto: Joana d'Arc Torres Assis
Por Arp Procópio
O Cometa Itabirano, maio de 1982, n. 28 – O antigo distrito de Santa Maria de Itabira, em prístinas eras, dividia-se, como a Gália de César, em duas portas: a “rua” e a “roça”.
A “rua”, à margem direita do Girau, ia do Mário Isidoro, o “carniceiro” (ou da Ormezinda, “a puta, a fornecedora” – CDA) até o Juca Pires/Da. Julieta Bretas (ao depois Chico Alves/Siá Siza), dividindo também em duas partes:
1 – A Rua de Baixo, que tinha parte com o capeta; 2 – a Rua de Cima, onde se achavam as duas escolas isoladas, uma para meninos, outra para meninas (30 a 40 alunos em cada), as maiores lojas e vendas, a casa paroquial, a Farmácia Paz, de Agenor Guerra, a de Trajano Procópio (mais para médico) e do Salvador Pires (Dodô), ao depois diretor do Grupo Escolar (mas isso já em 1923), e as melhores moradas.
A rua tinha dois apêndices: 1º) – o Lambari, extensa estrada poeirenta, com casas salteadas, que se estendia do Juca Pires até as Mamonas, de Siá Cota, viúva, mãe do citado Dodô e do prolifico Cadete (22 filhos com uma só mulher!); 2º) – o Conselho (que a erudita Mestra Adelina mandava gravar com c), do lado de lá do rio, refúgio do pessoal mais pobre, ligado à rua pela ponte e beco, com cerca de 30 choupanas, onde se achava o campo de futebol – invenção recente do Tatim Andrade, o cemitério, no alto de uma colina – e uma velha casa, caindo de podre, enfaticamente chamada de Santa Casa, reino da louca Burrudquê.
No Lambari, moravam três pretos importantes: a Isabel, do coro da igreja, o Antônio Damásio, fiscal da prefeitura, e Antônio Mestre que, em outubro, envergando a sua alva farda de “almirante”, comandava a marujada, disciplinada tropa de Nossa Senhora, em cujo louvor, dançava pelas ruas, durante três dias, cantando coisas assim: “Senhora rainha /sua casa cheia /a botões de rosa, /flor de laranjeira”.
Em torno do arraial, até meia légua de distância, situavam-se várias fazendas e fazendolas. Florença , dos poderosos irmãos Andrade (Cassemiro e Frederico), Borges, do seu Chico Cota (avô do dr. Zé Otávio/Joana d’Arc), o Vai-Vem, o Cedro, o Gamela, a Camarinha do Tatão Bretas/Iaiá, o Funil, de Santana, o Pau d’Alho, do Tôta, o maior cabaceiro, com sua altaneira Rosinha; alguns povoados: o Chaves, dos Aranda; o córrego da Lage, com a Fazenda dos Cordeiros, onde reinava Zé Gualberto, nosso Hercules, com sua frágil Lisá; o Barro Preto, da negrada.
Até aqui, descreveu-se a “rua” e suas adjacências. Já a “roça”, como em Proust (A busca do tempo perdido), dividia-se em dois “caminhos”: 1º) – o nobre caminho de Itabira, com as ilustres estirpes dos Guerra (Olímpio, da Fazenda Oriente; Quito, do Tirol), dos Cabral, como o Juca da Corrente; dos Pires, como o Custódio e sua D. Inácia, a “mestra” das meninas, nas Pedras; 2º) – o plebeu caminho de Ferros, com os Lages (como Chico Samuel e Saiá Dina, do Macuco, a dinâmica Siá Aura e suas três irmãs e pupilas, (Amerquina, Aurelina e Aurora), os Procópio (como o ti Paulo/Siá Rosa, do Funil), os Duarte, com razão chamados de “ciganos arranchados”, pela mania de trocas e baldrocas (com o Neco Luca, do Queiroz, já virada do Cacunda de Cima).
Era algo sutil a diferença entre o pessoal dos “caminhos”, não se fundando na riqueza, mas na prosápia do pessoal do caminho de Itabira, em contraste com o jeitão largados do caminho de Ferros. Assim, as mulheres Guerra, Cabral e Pires, eram “damas”, estrelas com luz própria, ao passo que as Procópio, as Lage e as Duarte eram meras “siás”, satélites dos maridos, por exemplo: Da. Olímpia, Da. Joaquina, Da. Virgínia, (que festejou 100 anos, podendo dizer: “minha neta, me dê cá seu neto”) em contraste com Siá Dina, de seu Chico Samuel, sendo este o mais rico (às vezes caía em pobreza), politiqueiro, dinâmico e inzoneiro de todos.
Vinícius, você que tão bem conhece as manhas de nossa gente, desde a Barra do Girau até as Duas Barras, será capaz de explicar essas sutilezas?
Quem, depois de longas andanças, volta a rever os seus passos, ciente de que esses dois caminhos “não se cruzavam”, surpreende-se com o fato de um Ly, de um dr. Zé Otávio, nobres descendentes dos Guerra e das “donas”, da estrada de Itabira, terem-se rebaixado, a ponto de se casarem , respectivamente, com netas de siá Dedê, do Morro Escuro, e de Siá Rosa do Funil, uma e outra do caminho de Ferros, sem os faróis de nobreza de seus cônjuges. Que revolução foi essa, Vinicius? Para mim, isso é motivo de anulação de casamentos: erro relativo a pessoas do cônjuge feminino…
Êi, Salvador Pires Pontes!
Meu mestre querido, dos áureos tempos do Grupo Escolar de Santa Maria, dá uma sopa aí pros meninos do Cometa. Eles são meio tontos (pinguços habituais), mas boa gente. Você (desdigo, o Senhor) tem muitas coisas a revelar: sua atividade profissional, a princípio, como farmacêutico, depois como inspetor de Ensino, com ingresso por concurso (o primeiro, mais sério e mais rígido), seus livros como Educador emérito (se alguém degenerou posteriormente, a culpa não é sua), como estudioso de problemas nacionais e, principalmente, como cultor do tupi-guarani.
Vai lá, Lúcio, ele mora na Carlos Gomes, pertinho docê.
[Jornal O Cometa Itabirano, maio de 1982, n. 28 – Pesquisa: Cristina Silveira]
Sobre o professor Arp Procópio de Carvalho, Embaixador no Rio do Principado Livre do Matto Dentro

O garrucheiro Arp Procópio de Carvalho foi uma figura marcante na história do ensino superior brasileiro, especialmente ligado ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Foi colaborador assíduo do jornal O Cometa Itabirano, na década de 1980, até a sua morte em 1995.
Advogado, Arp era conhecido por seu bom humor e frases espirituosas. Dizia que as disputas jurídicas giravam em torno de “barra de ouro, barra de saia e barra de terra”.
Escreveu o livro Geopolítica do Transporte Aéreo Brasileiro, publicado em 1963.
Durante a ditadura militar, Arp Procópio foi um dos professores expulsos do ITA por motivos políticos, acusado de oposição ao regime. Ele chegou a ser preso e interrogado em 1964, junto com o professor Szmul Jakob Goldberg. Ambos foram posteriormente anistiados.
Curiosidade literária
O professor também aparece em uma anedota envolvendo Carlos Drummond de Andrade. Arp teria reclamado com o poeta por ter mudado o final do poema Quadrilha, trocando o personagem Brederodes por outro. Drummond respondeu que Brederodes era um marginal, enquanto o novo personagem era um industrial português, mais adequado para Lili, segundo ele.