A elite brasileira e a perpetuação da desigualdade: do Brasil Colônia à resistência às reformas fiscais
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
A polêmica entre Haddad e a extrema direita expõe as contradições históricas do capitalismo brasileiro
Valdecir Diniz Oliveira*
O embate entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e deputados bolsonaristas na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados evidenciou a estratégia da extrema direita de reduzir o debate econômico a slogans vazios e fake news disseminadas nas redes sociais.
Durante a sessão, os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Carlos Jordy (PL-RJ) questionaram Haddad sobre o déficit fiscal e o aumento de impostos, mas, antes mesmo de ouvir as respostas, abandonaram a audiência. O ministro criticou a postura dos parlamentares, acusando-os de usar as reuniões apenas para gravar vídeos e alimentar narrativas distorcidas.
“A gente vem aqui para prestar esclarecimentos, mas eles fogem do debate. Perguntam só para aparecer e saem antes de ouvir a explicação, porque não querem que o diálogo faça com que mudem de ideia”, declarou Haddad, destacando que esse comportamento segue a lógica do ex-presidente Jair Bolsonaro, que evitava debates públicos durante sua campanha em 2018 para escapar de questionamentos mais profundos.
O papel da mídia e a amplificação da extrema direita
A cobertura da imprensa sobre o episódio também gerou críticas. Veículos como a Rede Globo foram acusados de amplificar a narrativa da oposição e dar espaço desproporcional à extrema direita, reforçando discursos contra as reformas fiscais propostas pelo governo.
Enquanto setores progressistas apontam a necessidade de uma redistribuição tributária, a mídia tradicional replica a versão da elite econômica, tratando medidas de correção fiscal como “ataques ao setor produtivo”.
A resistência da direita à reforma não está fundamentada em preocupações com o crescimento econômico, mas sim na defesa de privilégios que perpetuam a desigualdade.
A elite não quer ver mudanças no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), muito menos a taxação de dividendos, que seguem isentos do Imposto de Renda, ao contrário dos assalariados, que têm desconto direto na fonte.
Resistência histórica
O episódio na Comissão de Finanças revela um padrão que acompanha a história do Brasil desde o período colonial. A elite econômica brasileira sempre atuou para preservar seus privilégios, impedindo reformas que democratizassem o acesso à riqueza e fortalecessem o mercado interno.
Ao longo dos séculos, reformas necessárias para a modernização do próprio capitalismo foram sistematicamente rejeitadas. Enquanto países desenvolvidos passaram por revoluções industriais, muitos fizeram reforma agrária e reformas tributárias que fortaleceram suas economias internas, o Brasil permaneceu atrelado a um sistema que favorece setores exportadores e a concentração de renda
A hipocrisia do Estado Mínimo
A elite empresarial brasileira defende o Estado Mínimo quando se trata de investimentos sociais, como Bolsa Família, ProUni e FIES, mas se torna keynesiana quando precisa de recursos públicos para resolver gargalos na economia.
Um exemplo claro dessa contradição é a atuação da Vale, que obteve financiamento do BNDES para modernizar suas usinas em Itabira, beneficiando-se de recursos públicos enquanto minimiza investimentos próprios.
Empresários pressionam o governo por investimentos do Estado em ferrovias, portos e rodovias, alegando que são essenciais para o crescimento econômico, mas sem admitir que esses projetos deveriam contar majoritariamente com capital privado.
É assim, enquanto defendem cortes de gastos sociais, empresários recorrem ao Estado para garantir infraestrutura para seus negócios.
Essa postura revela que a defesa do Estado Mínimo não passa de um discurso seletivo: o Estado deve ser mínimo para os pobres e máximo para os grandes investidores.
A reforma fiscal como ajuste do sistema vigente
Ao contrário do que afirma a oposição, as propostas de Fernando Haddad não representam um modelo socializante ou estatizante, mas sim um ajuste dentro do próprio funcionamento do sistema vigente.
A taxação de dividendos busca corrigir distorções históricas e eliminar privilégios que mantêm grandes investidores isentos do Imposto de Renda, enquanto trabalhadores assalariados têm impostos descontados na fonte.
Essa proposta não tem como objetivo romper com o capitalismo, mas sim fortalecê-lo, permitindo a construção de um mercado interno mais robusto e sustentável.
A experiência internacional mostra que, ao longo da história, o capitalismo só sobreviveu mediante ajustes que garantiram maior equilíbrio social.
O Estado de Bem-Estar Social, por exemplo, surgiu como resposta às crises do sistema, especialmente após a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, consolidando-se na Europa Ocidental como um modelo que combinava crescimento econômico com proteção social.
Esse modelo permitiu que países garantissem serviços públicos essenciais, como saúde, educação e previdência, promovendo estabilidade econômica e social.
No entanto, a partir dos anos 1970, com a crise do petróleo e a ascensão do neoliberalismo, muitos governos começaram a reduzir esses benefícios, alegando altos custos e baixa eficiência.
A social-democracia, que ajudou a salvar o capitalismo ao oferecer uma alternativa ao liberalismo puro, enfrentou desafios com a globalização e mudanças econômicas. A pressão por austeridade e privatizações reduziu o papel do Estado na economia, tornando o modelo de bem-estar social menos robusto.
Ainda assim, algumas nações europeias, como os países nórdicos, conseguiram preservar versões mais fortes desse sistema, garantindo justiça social sem comprometer o dinamismo econômico.
O Brasil, no entanto, permaneceu distante dessas reformas, perpetuando um sistema excludente que concentra riqueza e impede o desenvolvimento econômico interno.
Semelhanças
Curiosamente, a taxação de dividendos já havia sido defendida pelo ex-ministro Paulo Guedes, uma referência para o bolsonarismo, que enviou ao Congresso um projeto prevendo a taxação de 20% sobre dividendos acima de R$ 20 mil mensais.
Já Haddad propôs uma alíquota que incide sobre dividendos superiores a R$ 50 mil mensais, garantindo uma margem mais vantajosa para pequenos investidores e ajustando o sistema sem comprometer o dinamismo econômico.
Sem uma justa distribuição de riquezas e sem o fortalecimento do mercado interno, o Brasil continua sendo um dos países com maior disparidade entre ricos e pobres.
O desafio é romper com esse modelo excludente antes que a concentração extrema de riqueza comprometa de forma irreversível o desenvolvimento nacional e do capitalismo brasileiro.
*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador