Câncer de Pedra

Ilustração: Pink

Por Pink Leite D. Assis*

Quando um asteroide de metal se chocou com o planeta Terra, há milhões de anos atrás, criou-se, no local do impacto, uma montanha solitária. Ela tinha um coração de ouro e um peito de ferro. Sua pele metálica refletia a luz do sol, que chegava do espaço, para outros cantos, como uma grande bola espelho de uma discoteca. Em sua meditação silenciosa, por anos permaneceu inconsciente. Observou o planeta se transformar de um deserto interminável a uma mata densa e abundante em água.

Os primeiros humanoides começaram a habitar os arredores desta montanha e perceberam, no brilho refletido, algo digno de ser louvado. Ali instauraram sua fé. Oferendas à montanha eram recorrentes: o povo, ao redor da pedra que brilha, oferecia sua caça, seus corpos e sua música para que ela continuasse irradiando toda energia conduzida pelo seu maciço metálico. Ofereciam também as palavras de sua língua indígena e assim começaram a se comunicar.

A montanha ganhou consciência e passou a enviar mensagens para seus devotos. Quando o sol estava à pino, seus raios eram refletidos com fluência pelo ferro e repartidos para todos os lados. Os fiéis sabiam que a montanha estava agradecendo sua devoção quando algum destes raios rapidamente iluminava seus olhos no cotidiano da vida.

A montanha estava tão feliz com a vida que acontecia ali que, num dia sem nuvens, conduziu e refletiu os raios solares para todos os arredores ainda não alcançados. Neste dia, os indígenas que ali moravam batizaram a montanha de Itabira, ao som de uma música. Itabira estava tão alegre e convidou mais pessoas para fazerem parte daquele ecossistema saudável e comemorarem seu batismo.

De longe, colonizadores tiveram seus olhos brevemente cegados pelo reflexo. Foram margeando um rio até encontrar a origem daquela luz e, quando chegaram nos pés da pedra que brilha, revelaram que só queriam extrair as riquezas dali sem dar nenhuma oferenda em troca. Justificaram que o brilho havia machucado os olhos, mas que não deixariam ninguém mais ser atingido pela luz.

A montanha então se entristeceu ao ver que havia chamado indivíduos egoístas para celebrar. Os dias seguiram nublados e cinzas enquanto os colonizadores expulsavam e assassinavam o povo indígena que ali morava.

Falavam outra língua e não se preocuparam em ensiná-la para a montanha. Ela ficou em silêncio enquanto era saqueada. Com picaretas, descascavam seu peito de ferro. Itabira sofria. Quando cavaram o suficiente para descobrir que havia um coração de ouro ali dentro, mandaram milhares de escravizados continuar os trabalhos.

O povo negro, que trabalhava nas minas, já não mais deixava a montanha só. Começaram a fazer suas oferendas para aquela terra e voltaram a ensinar o idioma para que ela desse boas pedras. A montanha, mesmo sentindo dor, entendeu que era hora de se repartir pelo mundo e então decidiu que as mais belas pedras apareceriam para aqueles que mantivessem contato pleno com ela.

Seu nome deixou de ser Itabira quando os negros mineiros batizaram aquela pedra de Cauê. Cauê adorou tanto o novo nome, que, quando era cantado em coro enquanto retiravam seus minerais no braço, não sentia mais dor. Cauê fora diminuindo em ritmos lentos: o coro e a montanha. A consciência de Cauê, no entanto, se dividia igual eram repartidos seus pedaços.

Cauê resolveu colocar boa parte da sua consciência num diamante minúsculo. No fundo de uma galeria escura, Carlos pensou que estivesse ficando louco ao enxergar a luz do sol refletida na pedra preciosa. Carlos contrabandeou aquele diamante num santinho de pau oco e o levou para casa. Lá a relíquia permaneceu por gerações. A montanha estava sofrendo, mas ainda tinha esperanças de recuperar o ecossistema saudável que havia ali. Noutro dia sem nuvens, refletiu a luz para todos os cantos mais uma vez… Mas ninguém mais veio.

As máquinas tomaram conta das pessoas, que retiravam com cuidado a preciosidade do minério e tudo ficou mais violento, inclusive o silêncio. O barulho das máquinas não comunicava nada para Cauê além de que aquela seria a trilha sonora de seu fim. Cauê viu rasgarem seu peito de ferro, retirarem seu coração de ouro ainda pulsante e outros órgãos esmeralda. Aos poucos perdeu quase toda consciência. Os irmãos de Cauê, que também tinham riquezas, foram, um a um, sendo invadidos pelas máquinas e esquartejados. O complexo de mineração já havia tomado cerca de sete montanhas. Todo o vale estava contaminado.

Como sua última esperança, Cauê resolveu ensinar como se rebelar. Carlos Filho, que portava o diamante de seu pai, sonhou um idioma que confundisse os ingleses donos das minas. As poucas pessoas, cujo trabalho nas galerias ainda persistia, começaram a falar a “guinlagem de camaco”. Se organizaram, em pleno horário de serviço, e lutaram alguns dias de greve para que Cauê pudesse descansar.

Mas as máquinas já não precisavam mais das pessoas para funcionarem. Todos que participaram das greves foram demitidos e substituídos. Carlos Neto morreu na mina e perdeu o diamante de seu avô numa poça de lama; enterrado. Após as máquinas atingirem o lençol freático, as dores de Cauê se espalharam pelas nascentes de todas as montanhas ao redor e secaram as águas. Fizeram daquelas lágrimas de rios doces, barragens de rejeitos. E Cauê, mesmo sem consciência, maciço ou até mesmo ferro, ainda sentia a contaminação profunda.

Cauê foi repartido entre todo o globo a partir da metade do século XX. Cada objeto industrial tinha, em sua composição, um pouco daquele triste minério de ferro retirado contra vontade da montanha. A cidade, na qual o pico era localizado, se tornou uma área de risco e fora completamente cedida para a mineradora.

Todos tiveram que abandonar suas casas, assim como os indígenas e como os grevistas. Cauê nunca soube, mas sofreu de um câncer incurável. Em sua fase terminal, não teve tempo de perceber que havia contaminado toda região com aqueles humanos egoístas ao apenas convidar incondicionalmente todos para dançar ao brilho do sol.

Avatar do utilizador*Oi. Soy Pink; multiartista brasileire do interior de Minas Gerais. Começei a experimentar conscientemente as artes ainda em 2012, durante a educação fundamental. Desde 2018 atuo no setor da literatura, como poetista e escritore, e na área do audiovisual; atualmente, estou discente de Bacharelado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Me interesso pelas áreas de Montagem, Direção, Fotografia, Composição, Design, Continuidade, Produção, Crítica,  Roteiro e Pesquisa, com foco no desenvolvimento teórico sobre a relação inseparável entre a política e a sétima arte.

Sobre a imagem em destaque:

Arte digital em linhas pretas sob tela branca representando a mineração predatória que assola a América Latina desde o século XVI. O pico de itabira – a pedra que brilha, ou melhor: que brilhou – é cercada pela mão completamente visível do capitalismo, que consome tudo que toca. Abaixo, o rio deságua os rejeitos do processo de destruição da natureza no mar. Do céu, lá de cima, parece pouca terra arrasada, mas, se ver com os próprios olhos do ponto de vista dos pés das meias montanhas, perceberá a imensidão da desgraça. Câncer de pedra também é o título de um conto escrito por mim, publicado neste site; nele, conto a história de como o pico de itabira nasceu, viveu e morreu (assim como outras tantas montanhas da américa latina) através do gênero de realismo mágico.

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