Canto de galo

Ilustração Galo (1941), de Cândido Portinari

Maria Julieta Drummond de Andrade

Sou mulher urbana, de coração mineiro. Quer dizer: nasci num bairro tranquilo de província, onde cada carro que passava era um acontecimento, e cedo fui transplantada para uma cidade grande.

Saí direto de uma casa velha, ampla, com quintal e galinheiro, para o nono andar de um edifício, de cuja varanda eu contemplava, zonza, o movimento dos ônibus e automóveis, desfilando lá embaixo. Estranhei, a princípio, mas acabei me acostumando. Só que essa mudança deixou em mim uma nostalgia de coisas serenas, de plantas, do cheiro de jasmim que perfumava as noites de antes.

De vez em quando esse sentimento suave reaparece e, sem dor, toma conta do meu pensamento. Lembro-me então de como eram as manhãs de Belo Horizonte, do sol muito nítido que iluminava o jardim, dos bichinhos que passeavam pelos canteiros, dos galos cocoricando por toda parte.

Minha avó era sábia e ativa; antes do almoço entrava no galinheiro e, indiferente à confusão que produzia entre as aves aflitas, ia agarrando galinha por galinha; tocava-as e separava-as. Identificava sem hesitação as que estavam chocas, isolando-as num cercado de arame, junto aos ninhos; recolhia os ovos e resmungava contra os galos de crista empinada.

Depois entrava na cozinha onde o feijão, já cozido, esperava os temperos. Às onze horas , quando o alho e a cebola refogados recendiam, a sirena da fábrica, pontual, cortava o ar e todos sabiam que o almoço simples dos netos já estava pronto. Os adultos teriam também, às onze e meia, ensopadinho de carne com batata, taioba, jiló ou quiabo.

Eu ficava rodando por ali, à espera do pilão com que se amassava o feijão e em torno do qual se grudava uma crosta espessa, áspera, insuperável, que a língua infantil lambia com delícia.

Juntava as cascas dos legumes, para armar, num canto do alpendre, figuras coloridas; com os jilós e alguns palitos, criava animais pernaltas, de cara estranha; com as sementes de abobora, torres esbranquiçadas e pegajosas; os quiabos eram tamanduás, cobras, peixes voadores.

Esses brinquedos silenciosos ocupavam as horas da sesta. Havia outros, no quintal, junto aos pés de chuchu, cujas mínimas hastes (garras?) enroscadas podiam servir de colares e brincos. Era bom apertar umas florzinhas de veludo, apropriadamente chamadas de bocas-de-leão, pois, comprimidas entre os dedos, formavam uma espécie de goela (reencontrei-as mais tarde no campo argentino, sob o nome ligeiro de conejitos).

Era melhor mastigar as azedinhas; procurar os trevos de quatro folhas, que nunca se deixavam ver; descobrir o veneno vermelho de um fruto espinhoso e oval; mascar pétalas de rosa e folhas de limoeiro; colecionar violetas e joaninhas; fazer cócegas nas minhocas. Tudo parecia calmo ao redor, e até as galinhas ciscavam com menos afobação.

Às duas e pouco o movimento recomeçava, na casa e fora dela. Os enterros se detinham na igreja da esquina, a caminho do cemitério. Pelo menos uma vez por mês morria alguém da paróquia: vinha na frente do cortejo um carro preto e dourado, com o féretro de luxo; atrás, um ou dois carros de aluguel, com os parentes do morto.

Os sinos tocavam, as crianças corriam para a igreja e se misturavam ao pequeno grupo escuro, choroso, entre as velas que os coroinhas acendiam. O padre rezava e benzia, a fumaça confortadora dos turíbilos se derramava pela nave. A morte era singela naquele tempo, e dessas cerimônias sobrava uma indizível impressão de festa, lágrimas, flores podres.

Paisagem, Arnaldo Pedroso d’Horta (1914-1973), do Brasil (São Paulo)

E a igreja – correndo! – ao quintal, onde duas árvores, repletas de mangas e goiabas, antecipavam o paraíso. Não sei o que era melhor: se comer as frutas, ainda quentes do sol, ou acaricia-las apenas lisas, macias, nos galhos mais altos, sentindo o poder e a vertigem da altura.

Da fortaleza aérea víamos o louco, andando de um lado para o outro no pomar vizinho, inquieto, soturno, mastigando pragas ininteligíveis, ameaçador com a sua espingarda de brinquedo. Em novembro, a jabuticabeira reunia todos os prazeres.

O jardim e a horta eram regados ao entardecer. Minha avó desenrolava a mangueira, enfiava uma das pontas na torneira do tanque e espadanava água em todas as direções, cintilante.

As plantas renasciam sob aquela chuva generosa, e cada cor se tornava mais intensa: subjugavam-se os verdes, de todos os tons, o rosa vivo, o rubi, o lilás quase roxo, o festivo amarelo. O abacateiro, a ameixeira, o mamoeiro (tão esgalgo) ficavam mais bonitos molhados. Da terra desprendia-se um cheiro que fazia bem, e a noite ia se abrindo lentamente, doce, conhecida.

Em vasta área de Belo Horizonte, o pai do poeta abriu um beco, a que deu o nome São Geraldo, e nela construiu casas para alugar — algumas das quais ainda se acham de pé. Em uma dessas residências morou, com sua família, a jovem Dolores de Moraes, antes de se casar, em 1925, com Carlos Drummond de Andrade. O antigo beco é hoje Rua São Geraldo (Foto: Reprodução/acervo Cristina Silveira)

Depois do jantar, a benção, no mês de maio, com aquela cachoeira de campainhas, luzes, incenso, cravos e palmas-de-santa-rita enfeitando o altar-mor. As famílias se dispersavam: os mais idosos se recolhiam, os jovens davam uma volta em torno da igreja, ao luar, ou iam até a sorveteria.

No céu impecável reconhecíamos o Cruzeiro, as Três Maria, Aldebarã; em todos os portões havia um jasmineiro em flor. Hora de dormir, hora de rezar o terço, de pedir ajuda às almas, perdão para os pecadores. E baixava o sossego, que só os passos de algum notívago interrompiam.

Penso em tudo isso sem tristeza. Casas, coisas, costumes tidos e perdidos ressurgem em meu coração de Minas e frutificam subitamente em meio à trepidação que me circunda. Meu quotidiano de hoje nada tem a ver com o daquele tempo, mas já disse que me adaptei a ele.

Só que ás vezes, quando chego à minha varandinha atual – onde reuni alguns potes com filodendros, gerânios, azaleias, ciclamens, marantas, e até umas latinhas com pés de alface e tomate – sinto que, à maneira citadina, estou querendo prolongar aquelas velhas cenas, a horta, o jardim, o milagre da província. O cheiro da terra úmida é quase o mesmo; os galos é que não cantam mais.

[Livro: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade. RJ: Nova Fronteira, 1982 – Pesquisa: Cristina Silveira]

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