Drummond, impressões de um homem íntegro

Imagem: Vidigal (2006), Tunga (1952-2016), do Brasil (Rio)

1986

Saravá! Dolores Dutra de Morais Drummond.

Saravá! Manuel Graña Etcheverry.

Saravá! Pedro Augusto Graña Drummond.

Saravá! Luís Maurício Graña Drummond.

Saravá! Carlos Manuel Graña Drummond.

Saravá! Miguel Vieira Graña Drummond.

 Por Fernando Segismundo

Finda a leitura de O Observador no Escritório, de Carlos Drummond de Andrade, só uma divergência turvou minha satisfação plena. Espectador privilegiado, Drummond o foi, e é, junto ao povo, nos embates da vida. Testemunha atenta e imparcial usou os olhos e os ouvidos para absorver os fatos em seu devir.

Deles, o registro jamais se daria a frio, num cômodo resguardado, isento o redator das vibrações circundantes.

Talvez o título O Observador na Rua, reproduzisse do livro sua verdade real, num significado semelhante ao poder de manifestar e existir desse bravo Carlos Drummond de Andrade – de aparência seca, de revelações desesperançadas, em guarda contra a indiscrição, talvez concha e enigma, certamente introvertido, mas atento, com direito à vida própria, ao convívio dos íntimos e à circunspeção.

Qual carapaça! Porém, não se esperem dele arroubos, delírios de grandeza, demonstrações de poder ou a reinvenção do mundo.

Política e literatura são as substâncias de O Observador no Escritório, assuntos pessoais, familiares, descartou-os Drummond, cioso de sua privatividade.  Num dia longínquo, biógrafos se incumbirão de afastar os véus prudentes e o Poeta será revelado por inteiro à consagração dos pósteros.

De resto, executada a banalidade do cotidiano, Drummond tem-se mostrado ao natural, sem retraimentos nem escudos. Confissões de Minas, seu primeiro livro em prosa (1944), já o apresenta na intimidade da terra e da gente alterosas. Por intermédio de João Brandão, alter-ego despachado, ele tem afirmado o que entende como justo e possível, colaborando, senão para endireitar o mundo, para conserto do Brasil.

A máscara burlesca não oculta a frase triste. Em todos os seus livros de crônicas e até nas historinhas, Drummond deu os recados que entendeu indispensáveis: desceu à via pública e apontou como deve agir. E toda sua poesia é confessional – perdoem-me o truísmo. Toda, de 1930 a 1985. Drummond sempre foi afirmativo e convincente, sem se confundir com os diaristas vaidosos e torrenciais.

De peculiar, nesta publicação, pouco – volto a dizer. Queixa-se – ou queixava-se – da falta de dinheiro. Jornalista e funcionário público eram-lhe escassos os proventos dessas atividades. Largada a chefia de gabinete do Ministro Gustavo Capanema – precisava de ficar solto para combater o continuísmo de Getúlio Vargas –, exerceu um “empreguinho de ocasião” no Instituto Nacional do Livro.

Aplicou-se na redação de verbetes para um dicionário de literatura brasileira que jamais conheceu a luz do dia. Tudo mais que nos prende ao Observador poreja política e literatura. Na primeira, esperdiçou-se. Individualista, incomodam-no os conchavos, as concessões, a sarabanda dos partidos.

Barcos (1992), Jayme Reis, do Brasil (Itabira)

Nela sempre se comportou como gauche, conforme a profecia angelical. Da segunda é vitorioso desde a estreia. Há meio século vem ocupando o mais alto posto da poesia e da prosa brasileira. Tão prosador quanto Machado, e melhor poeta. A função pública, superiormente executada, foi obrigação e zelo; amor, devotou-o à sua obra, aos confrades e aos leitores.

Introvertido e cauto (por mineiridade e inclinação), Drummond, não obstante, afirma-se e destaca-se. Em Bernanos surpreendeu “certa falta de nexo” e rotulou-lhe a escrita como “desesperante monotonia”.

Abgar Renault, alto e poderoso colaborador de Capanema no Ministério ainda instalado no Edifício Rex, parecia-lhe “resmungão”. Para Portinari cunhou uma divisa simples e precisa: “A arte é sua vida, toda sua vida” (1944). Mais tardia diria que o pintor não levara a sério a Semana de Arte Moderna.

Mário de Andrade, uma de suas maiores admirações, teve atuação apagada no I Congresso Nacional de Escritores. Drummond desvendou-lhe a ferida, – seu “individualismo consciente”. Várias vezes se refere, e bem, a Prudente de Moraes, neto, figura notória do Modernismo.

De Vinicius de Moraes conta a participação num ato espirita, o poeta-médium interrompendo a comunicação do além para saborear uma cerveja. Manoel Bandeira é uma de suas adorações.

Apreciava muitíssimo o casal Eugênia-Álvaro Moreyra. Um ídolo, este; copiava-lhe “até as reticencias”. De “xaroposa” qualificou a oração do ex-ministro João Neves da Fontoura no II Congresso Brasileiro de Escritores. “A Revolução de 30 foi uma bobagem” – ouviu de Francisco Campos.

Uma conversa com Luís Carlos Prestes na cadeia (1945) rendeu ao Poeta cálidas páginas de O Observador. Impressionaram-no conceitos do líder comunista, como este: “Não faço política com as minhas paixões. Faço política com as minhas ideias e a realidade”.

Foi nesse encontro, parece, que Prestes expôs pela primeira vez o tema do avanço-recuo, ou seja: o revezamento do progresso e da estagnação no desenvolvimento político-social brasileiro. Suas próprias palavras: “Movimento alternado de avanço, recuo, avanço, que marca os fatos políticos e a vida social”. Decorridos dez anos, o general Golbery do Couto e Silva cunharia a fórmula das diástoles e sístoles para explicar a centralização e a descentralização administrativas.

Juízos e atitudes de um homem sério e sensível: “O dever é triste”. “A natureza não me inspira emoção particular”. Não é apreciador de Castro Alves, “pondo de lado a parte condoreira que o tempo se incumbiu de converter em oratória”. Quando Koestler era execrado pelos comunistas do mundo inteiro, leu e gostou de Le Zéro et l’Infini. Adversário do Concretismo e indiferente à Academia Brasileira de Letras. As traduções são “moeda falsa”.

Desagradou-lhe a literatura de Dionélio Machado. Rasgo de profeta bíblico: os políticos conservadores, hostis ao progresso social, mostram-se implacáveis diante das vindições proletárias.

Não simpatizou com Pablo Neruda, achando que “até poesia cansa”. Otávio Brandão “é puro”, mas seus versos não são propriamente poéticos. Em 1947 registrou que Augusto Frederico Schimidt – já então muitíssimo bem instalado na vida – andava “com vontade de morrer”…

A exemplo de tantos intelectuais, era Drummond admirador do outrora Cavaleiro da Esperança, como deixa bem claro no Observador. Valeram-se dessa simpatia, entre outros, Álvaro Moreyra, Aydano do Couto Ferraz, Dalcídio Jurandyr, Eneida de Moraes para fazerem dele um dos diretores da Tribuna Popular, órgão do PCB.

Tratam-no “com grande cortesia”, mas sente-se “lamentavelmente desprovido de ideias e palavras”. Acaba por perceber que não passa de um diretor-fantasma; vive uma “situação de contornos vagos e desestimulantes”.

Reage, abandona o cargo nominal e nunca mais perdoou aos comunistas o papel de fantoche que lhe atribuíram. Daí, alguns episódios nos quais se viu envolvido e suas reações em prosa e verso e, até, física.

Composição nos tons verdes, terras, cinzas, ocres, rosas, azul e branco. Textura lisa. Retrato de meio-busto de homem de frente, contra fundo verde “degradé”. O retratado tem rosto fino e comprido, cabelos escuros, curtos e repartidos à direita; testa alta e larga com entradas pronunciadas, sobrancelhas escuras, finas e arqueadas, olhos amendoados em tom azul esverdeado, nariz longo e fino, lábios finos fechados e queixo reto. Veste paletó cinza com lapela pouco definida sobre camisa de colarinho e gravata lisa, cinza azulada. Fundo verde “degradé” até encontrar área terra, na base da composição. (Projeto Portinari)

Sobre alguns silencia, de outros, ocupa-se no diário, como a criação mal sucedida da União dos Trabalhadores Intelectuais – UTI –, e a famosa noite de 18 de outubro de 1947, em Belo Horizonte, quando um grupo de intelectuais abandona o plenário do Congresso promovido pela Associação Brasileira de Escritores – ABDE, em protesto contra a manobra dos comunistas.

Aborrecia o Poeta a “carga ativista” da ABADE e sonha aliviá-la com a UTI. Após algumas reuniões, conclui que esta “será uma ilusão ridícula”. E a ABADE, onde pontificavam profissionais da política partidária no lugar de escritores, decompõe-se, sendo afinal fechada.

O que não pudera a política nem a Direita, consegui-o o próprio PCB. Embriagadora vingança do Poeta, que bem lhe traduz os ressentimentos: II Congresso Brasileiro de Escritores, 1947: “Tive o prazer de causar pequenina apreensão aos comunistas, com a minha resolução de lutar pelo caráter não político da Associação Brasileira de Escritores, isto é, para convertê-la em órgão profissional”.

Vale a pena recordar a desavença então verificada entre comunistas, simpatizantes e inimigos da doutrina.

De surpresa, é aprovada por aclamação a proposta de Aires Mata Machado Filho definindo a atitude dos escritores contra o fechamento do Partido Comunista e a cassação dos mandatos parlamentares comunistas. Estarrecidos, protestam os componentes da Comissão de Assuntos Políticos, onde nada fora tratado.

Aprovam a moção, mas repeliam “os princípios e métodos do P.C.”. Renunciam e abandonam o recinto do Congresso, dispostos a encerrar ali sua participação. Nega-se Drummond a “servir de instrumento aos comunistas” e vai, com os amigos, bebericar chope no bar Pinguim. Iniciadas ou retomadas as negociações, voltam, horas depois, os antagonistas ao plenário e “tudo acabou em paz”.

Não quero contradita-lo, mas darei a minha versão do fato. Drummond terá ficado a bebericar seu chope no Pinguim, porém de muitos outros seus companheiros o local ou esconderijo foi bem diferente. Custou-nos muito andar a recolhê-los altas horas da noite, em vários pontos da cidade. Os pormenores ficam para a ocasião mais conveniente. Até porque, pelo tempo decorrido, se pecadilhos houve, já estão peremptos…

Estas são algumas das numerosas revelações de Drummond em O Observador no Escritório, livro necessário ao conhecimento do Autor e à história da literatura e da política. Obra de um homem reto, testemunha presencial dos sucessos, desobrigado de zumbaias e falsidades.

Homem que teve por amigos a Ribeiro Couto, Gastão Cruls, Marques Rebelo, Américo Facó, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Adalgisa Néri e tantas outras fulgurações do universo cultural.

Que não se peja de observar “a tristeza de escrever para jornal, como os condenados cumprem pena”. Que se demitiu do Conselho Nacional de Cultura (1961) por entendê-lo “inútil” e “inconveniente”. E que, na condição de ghost-writer de Cristiano Machado, redigiu quarenta discursos sem nenhuma paga. Este é o Drummond por nós também observado e benquisto.

[Boletim ABI (RJ), Jan. Fev., 1986. Biblioteca Bastos Tigre/ABI – Pesquisa: Cristina Silviera]

 

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