Visão 944

O monumento Mãe Pátria, com 85 metros, é a maior escultura no mundo de uma mulher;  erguido em 1959, em Volgogrado, antiga Stalingrado, na Rússia. Está no topo da colina de Mamayev Kurgan, comemorando a Batalha de Stalingrado. O monumento foi projetado pelo escultor Yevgeni Vuchetich e pelo engenheiro civil Nikolai Nikitin

Fotos: iStock/
by Getty Images

Carlos Drummond de Andrade

Meus olhos são pequenos para ver

a massa de silêncio concentrada

por sobre a onda severa, piso oceânico

 esperando a passagem dos soldados.

Meus olhos são pequenos para ver

luzir na sombra a foice da invasão

e os olhos no relógio, fascinados,

ou as unhas brotando em dedos frios.

Meus olhos são pequenos para ver

o general com seu capote cinza

escolhendo no mapa uma cidade

que amanhã será pó e pus no arame.

Meus olhos são pequenos para ver

a bateria de rádio prevenindo

vultos a rastejar na praia obscura

aonde chegam pedaços de navios.

Meus olhos são pequenos para ver

o transporte de caixas de comida,

de roupas, de remédios, de bandagens

para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver

o corpo pegajento das mulheres

que foram lindas, beijo cancelado

na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver

a distância da casa na Alemanha

a uma ponte na Rússia, onde retratos,

cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver

Uma casa sem fogo e sem janela,

Sem meninos em roda, sem talher,

Sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

Meus olhos são pequenos para ver

os milhares de casa invisíveis

na planície de neve onde se erguia

uma cidade, o amor e uma canção.

Meus olhos são pequenos para ver

as fábricas tiradas do lugar,

levadas para longe, num tapete,

funcionando com fúria e com carinho.

Meus olhos são pequenos para ver

na blusa do aviador esse botão

que balança no corpo, fita o espelho

e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver

o deslizar do peixe sob as minas,

e sua convivência silenciosa

com os que afundam, corpos repartidos.

Meus olhos são pequenos para ver

os coqueiros rasgados e tombados

entre latas, na areia, entre formigas

incompreensivas, feias e vorazes.

Meus olhos são pequenos para ver

a fila de judeus de roupa negra,

de barba negra, prontos a seguir

para perto do muro – e o muro é branco.

Meus olhos são pequenos para ver

essa fila de carne em qualquer parte,

de querosene, sal ou de esperança

que fugiu dos mercados deste tempo.

Meus olhos são pequenos para ver

a gente do Pará e de Quebec

sem notícias dos seus e perguntando

ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos são pequenos para ver

todos os mortos, todos os feridos,

e este sinal no queixo de uma velha

que não pôde esperar a voz dos sinos.

Meus olhos são pequenos para ver

países mutilados como troncos,

proibidos de viver, mas em que a vida

lateja subterrânea e vingadora.

Meus olhos são pequenos para ver

as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,

os rios desatados, e os poderes

ilimitados mais que todo exército.

Meus olhos são pequenos para ver

toda essa força aguda e martelante,

a rebentar do chão e das vidraças,

ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

Meus olhos são pequenos para ver

tudo que uma hora tem, quando madura,

tudo que cabe em ti, na tua palma,

ó povo! Que no mundo te dispersas.

Meus olhos são pequenos para ver

atrás da guerra, atrás de outras derrotas,

essa imagem calada, que se avisa,

que ganha em cor, em forma e profusão.

Lênin e a bandeira da União Soviética

Meus olhos são pequenos para ver

tuas sonhadas ruas, teus objetos,

e uma ordem consentida (puro canto,

vai pastoreando sonos e trabalhos).

Meus olhos são pequenos para ver

essa mensagem franca pelos mares,

entre coisas outrora envilecidas

e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver

o mundo que se esvai em sujo e sangue,

outro mundo que brota, qual nelumbo

– mas vêm, pasmam, baixam deslumbrados.

(Pesquisa: Cristina Silveira)

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