Saae retira calçada de hematita para reparo na rede de esgoto e deixa Princesa Isabel sem restauro. Prefeito promete tomar providências

Foto: Reprodução/
Dullcinéia Calmon

Carlos Cruz

Definitivamente, o prefeito Marco Antônio Lage (PSB) não vai querer entrar no rol dos prefeitos que acabaram com as calçadas de hematita (seixos rolados) do centro histórico de Itabira.

Mas esse risco é motivo de preocupação da mais antiga moradora da rua Princesa Isabel, no centro histórico de Itabira, a única que conserva em sua quase totalidade a calçada toda de ferro – a rua Major Paulo é outra, mas parte da calçada foi substituída por pedras comuns.

Restauração é urgente para que a Princesa Isabel volte a ter o mesmo glamour original antes da intervenção do Saae (Foto: Carlos Cruz)

A moradora Dulcinéia Martins Calmon de Castro manifestou, com justificada razão, essa preocupação em suas páginas na rede social. Segundo ela, por uma necessária intervenção do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae), parte da calçada foi retirada – “e há quase um mês se encontra com as pedras amontoadas”, ficando com o solo exposto após o serviço ser concluído.

Pedras de hematita estão amontoadas em um canto da rua e muitas pessoas sem conhecimento de seu valor histórico estão levando sabe-se lá para qual finalidade (Foto: Dulcinéia Calmon)

“Informo que as pedras estão sendo levadas como lembranças pelas pessoas que transitam por aqui”, lamentou, perguntando onde serão encontradas pedras centenárias para a reposição, que não existem mais nas minas da Vale, onde atualmente prevalecem os itabiritos compactos.

A moradora lembra também que a calçada da rua Princesa Isabel é tombada pelo patrimônio histórico e cultual de Itabira. Portanto, uma eventual perda dessa calçada, por negligência ou incompetência, seria tipificado como crime de responsabilidade contra o patrimônio municipal. “Vamos olhar com carinho para a nossa Princesa Isabel”, ela pediu na postagem.

Procurado pela reportagem, o prefeito Marco Antônio Lage garantiu que a restauração desse patrimônio histórico do povo itabirano será realizada no menor espaço de tempo possível. “Determinarei o imediato reparo, farei isso imediatamente”, ele assegurou à reportagem.

Da mesma forma, o presidente do Saae, Carlos “Cac” Carmelo Torres Moreira, disse que a calçada será restaurada de imediato. “Terminamos de refazer o calçamento na rua Major Paulo e vamos restaurar agora a calçada da Princesa Isabel”, assegurou.

Perfeito, só que a reportagem esteve na Major Paulo e constatou que o restauro não ficou bem feito. Há trechos ainda sem calçamento e pedras de hematita se encontram soltas na histórica rua Itabira, cujo entorno, inclusive o antigo Hospital Nossa Senhora das Dores, há tempo clama por uma restauração geral.

Restauro da calçada de hematita da rua Major Paulo não ficou bem feito: há pedras soltas e falhas em vários pontos. Além disso, necessita de urgente capina (Foto: Carlos Cruz)

Essa é outra promessa de Marco Antônio Lage ainda não realizada. Mas ainda há tempo, embora o tempo urge e voa feito avião a jato. Portanto, mãos à obra, prefeito e presidente do Saae. Após a restauração geral na Major Paulo, rua e entorno precisam ser tombados como patrimônio histórico de Itabira, a exemplo do que ocorreu com a Princesa Isabel.

Perdas incomparáveis

 

Calçada da rua Tiradentes e de todo o centro histórico foi entregue à CVRD para pagamento de dívida da Prefeitura (Foto: Miguel Bréscia)

No passado, quando ainda não havia tombamento histórico em Itabira, e a modernidade mandava retirar as calçadas para que fossem substituídas por asfalto, o então prefeito Daniel Jardim de Grisolia, com a aprovação do legislativo itabirano, retirou as pedras de hematita do centro histórico, cedendo-as a então Companhia Vale do Rio Doce como pagamento de dívidas da Prefeitura com a estatal brasileira – uma inversão de credores e devedores.

A autorização legislativa para a venda ocorreu com a aprovação da lei nº 284, sancionada pelo então prefeito em 10 de junho de 1959, no primeiro mandato de Daniel à frente desta urbe (1959-62).

Calçada de hematida da rua dos Operários também foi vendida para pagamento de dívida (Foto: Miguel Bréscia)

Pelo artigo primeiro dessa lei, o executivo municipal foi autorizado a vender para a “Companhia Vale do Rio Doce o minério de ferro existente nas ruas Água Santa, Guarda Mor Custódio, Tiradentes, praça Benedito Valadares até a Prefeitura”.

E no artigo 2º fica-se sabendo um dos motivos para que a negociação acontecesse. “O resultado da presente venda será para o pagamento das dívidas desta Prefeitura àquela Cia.”

Mas havia também um “clamor popular” para que as pedras fossem retiradas das calçadas.

Foi que ocorreu também, já no final da década de 1970, com a retirada da calçada de hematita da rua Santana, dessa vez na administração do ex-prefeito Jairo Magalhães Alves (1978-82).

Na ocasião a justificativa foi “que as mulheres com seus saltos altos corriam o risco de escorregar e quebrar as pernas”. Os seixos rolados de hematita foram substituídos por calçamento comum, outra perda incomparável para essa histórica cidade do Mato Dentro.

Já no governo de Jairo Magalhães a perda foi com a calçada de hematita da rua Santana que derrubava as mulheres com seus saltos altos (Foto: Miguel Bréscia)

Chão preto

Em substituição às genuínas calçadas de minério, talvez únicas no mundo, as ruas receberam o recapeamento asfáltico. “Assim que foi asfaltada a rodovia que liga Itabira à BR, a cidade também passou a contar com a modernidade do asfalto”, relembra o engenheiro de minas Rubens Alvarenga, 74 anos, que na época era menino recém-chegado à Itabira.

“Lembro-me dos caminhões da Vale sendo carregados com as pedras de hematita. As pessoas apoiavam, achavam que a cidade estava se modernizando”, conta.

Antiga rua Benjamin Constant também perdeu sua calçada de hematita: tem gente que ainda acha isso “modernidade” (Foto: MIguel Bréscia)

Segundo ele, as pedras eram hematitas com mais de 70% de ferro, com tamanho variando entre três a sete polegadas. “Foram parar nos Estados Unidos e na Europa, que naquela época ainda eram os principais mercados para o minério de Itabira.”

Rubens Alvarenga conta que era comum a empresa comprar minérios de pequenos mineradores. “Do (hospital) Nossa Senhora das Dores até o campo do Valério havia muito minério, que a Vale comprava de pequenos mineradores.”

O engenheiro de minas aposentado acredita que as hematitas das calçadas podem ter saído da encosta próxima da atual avenida João Soares da Silva, que liga o centro ao bairro Campestre. E, também, da encosta do então lendário pico do Cauê.

Perdas incomparáveis

 

Calçada de hematita na descida da Saúde, hoje rua Alexandre Drummond (Foto: acervo: Terezinha Souza)

A professora aposentada Celina de Figueiredo, 89 anos, também tem boas recordações daquela época. “Doutor Pedro Guerra (um dos fiadores da Vale, no seu início em Itabira) foi o único vereador que votou contra a venda das calçadas. Foi chamado de retrógrado, quando na verdade ele tinha uma visão à frente de seu tempo.”

Celina já morava em Belo Horizonte nessa ocasião, mas lamentou o fim das históricas calçadas. “Quando chovia e o sol refletia nas calçadas, as pedras de minério brilhavam. Era uma cena muito bonita”, recorda

Mas ela não culpa Daniel de Grisolia pelo fim das calçadas de hematita. “Era a força da modernidade chegando a Itabira”, contextualiza. “Naquele tempo não havia preocupação com a preservação do patrimônio histórico.”

Celina conta que a fama das calçadas de ferro de Itabira atravessou o oceano e foi parar na cidade de Lion, na França.

“A madre Maria de Jesus (fundadora do Colégio Nossa Senhora das Dores) nos contava que, quando tinha 5 anos, resolveu fugir de casa. Quando perguntavam para aonde ela ia, respondia que era para Itabiraá (carrega no sotaque francês), atraída pelas calçadas de ferro que o seu pai contava existir numa cidade brasileira. As ruas de Itabira calçadas com minério eram as únicas no mundo.”

Saiba mais aqui:

Não foi só a alma que Itabira vendeu para a Vale, mas também o calçamento de hematita do centro histórico

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