Livros assassinados
Salão de leitura da divisão de Obras Raras da BN-Rio
Pesquisa e acervo: Cristina Silveira
Carlos Drummond de Andrade
Não há somente homens assassinados: há também livros assassinados. Os livros são perseguidos, presos, surrados, amputados, desfigurados e queimados. O que se faz com a pessoa humana igualmente se pratica no monte de folhas cheias de pequenos sinais negros, que parecem dormir, mas estão acordados.
E porque os sinais estão acordados e falam, é preciso fazer com que se calem. Por isto, os livros são expulsos das bibliotecas e jogados a porões onde a sua voz não possa atravessar paredes; são postos no fogo, à maneira dos antigos mártires; são feitos em pedaços, exatamente como se fez tantas vezes com criaturas de carne e osso; são expungidos de páginas consideradas inconvenientes, como a um homem se arranca um braço ou se corta a língua.
Tudo isso se faz com os livros e mais ainda: alguns deles desaparecem misteriosamente das livrarias, onde se mostravam em vitrinas, e das bibliotecas, onde eram protegidos por um fichário e um catálogo. Para onde foram? Ainda vivem? A mesma interrogação se faz com referência a certas pessoas que ainda ontem encontrávamos na rua ou no trabalho; eram vistas há pouco, hoje ninguém mais as vê…
Entretanto, os jornais não lhes noticiaram a morte por doença, acidente ou crime; nem que tivessem viajado. Os jornais estão perfeitamente silenciosos, mas isso não impede que a pessoa se haja transformado em gás, em imponderável, em memória familiar: sumiu. Os livros também somem.
Não estou brincando de fazer comparações patéticas entre gente e papel; a realidade circundante me serve de fonte. Tivemos aqui mesmo no Brasil livros combatidos como seres vivos. E notei que não estou me referindo aos tempos do Santo Ofício, do privilégio da imprensa régia, e da autorização eclesiástica para publicação.
Refiro-me aos dias de hoje, iluminados pela Revolução francesa e pela Constituição norte-americana, dias de liberdade, comunicações fáceis, regime representativo, soberania popular, abrandamento de costumes, vulgarização da cultura… Falo de um país conhecido e de um tempo conhecido. Aqui e agora.
Implantado em 1937, o Estado Novo tinha de prender e exilar muita gente, mas não se esqueceu de fazer o mesmo com os livros. A tarefa não seria difícil, com o ambiente já preparado pelas crescente limitações à liberdade intelectual, impostas a partir de 1935. É assim que as obras de doutrina política não totalitárias ou de crítica a esta última foram desaparecendo das livrarias como dos catálogos de nossas editoras.
O romance brasileiro, que chegara a um nível altíssimo de exposição e análise da vida do trabalho, foi murchando, murchando até quase perecer de todo. A curva desse declínio pode ser expressa no seguinte confronto: Em 1935, “Moleque Ricardo”, de José Lins do Rego; em 1943, “O futuro nos pertence”, de Amílcar Dutra de Menezes…
E enquanto exemplares do primeiro eram destruídos num auto de fé em Salvador, o Dip proibia a transcrição da crítica feita ao segundo, no “Radical”, pelo jornalista Mário Martins, ou qualquer comentário desfavorável a essa obra literária do diretor do mesmo Dip.
A queima de livros na Bahia não será o episódio mais importante na luta entre o governo ditatorial e a literatura, pois essa luta se travou mais no silêncio do que na rua, mas é um episódio cheio de pitoresco. José Lins do Rego, Jorge Amado e Gilberto Freyre sofreram a tortura das brasas, numa praça da velha e gloriosa cidade.
Não podendo torrá-los pessoalmente, como seria mais agradável, o interventor federal mandou por na fogueira exemplares de romances dos dois primeiros, e de ensaios sociológicos do segundo; convocou povo, nobreza e clero para o espetáculo; e de tudo fez lavrar uma ata, que os jornais da época estamparam, para edificação de fieis e escarmento de hereges. Isto aconteceu em 1937.
Como o processo de combustão na praça pública oferecesse certos inconvenientes, não passou a constituir norma. O melhor seria a eliminação discreta dos livros. Assim compreendeu a Prefeitura do Distrito Federal, que pela sua Secretaria de Educação e Cultura (e Cultura!) proscreveu das bibliotecas escolares do Rio “A mil e uma noites”, de Cecília Meireles; “A lenda da casa branca”, de Leilá Leonardos; todo o admirável Monteiro Lobato infantil; “Descobertas do mundo”, de Matilde Rosa e Jorge Amado; o nosso prezado “Tom Sawyer”, de Mark Twain; a série de Tarzan; “Minhas aventuras pela Europa”, de Charlie Chaplin; a deliciosa Alice, de Lewis Carrol; e outros, e outros. A lista negra de que disponho conta 36 títulos; e é “adicional”…
Que esses livros encerrem matéria imprópria à formação do espírito infantil, eis o que as autoridades municipais se esqueceram de provar. Mero esquecimento, entretanto, pois não lhes faltariam alguns escritores e jornalistas, de nomes bem conhecidos entre nós, que se dispuseram a fazer a prova do espírito corruptor de Monteiro Lobato, das tendências ilegais da sra. Cecília Meireles, do profundo amoralismo de Mark Twain e Carroll…
Morte aos livros: é o secreto “slogan” estadonovista. Assim, quando Ivan Pedro de Martins apresenta no Rio Grande do Sul o seu lancinante depoimento sobre a vida do trabalhador das estâncias gaúchas, o Dipzinho de Porto Alegre prende o livro (diz-se apreender, mas é o mesmo) e com esta simples providência, melhora muito o teor de vida dos trabalhadores.
Mas sucede que, a esse tempo, já a consciência política se vai libertando do seu letargo de tantos anos (a consciência literária oprimida, essa não se deixara nunca anestesiar), e logo um clamor se espalha pelo Brasil inteiro, escritores se reúnem e protestam, o Dipzinho de Porto Alegre se encolhe… o grande Dip nacional manda libertar o livro. É um livro brutal, doloroso, amargo. Mas é um livro verdadeiro.
Quem dá notícia das obras de doutrina política ou de exposição da experiência social russa, durante quase dez anos, nas livrarias e bibliotecas do Rio de Janeiro? Estavam nas prateleiras, mas um vento os levou. Diz-se que a Chefia de Policia mantém em seus depósitos uma colossal quantidade de material impresso e destinado ao consumo público.
Lá estarão, pois, os volumes de texto escolar, as obras de consulta universitária, a documentação de viajantes e observadores, as coleções oficiais que eram proibidas consultar, porque era proibido conhecer, analisar e julgar um fato da história humana.
Lá estarão, lá apodrecerão. Verdade seja que outros exemplares hoje circulam. Até quando? Perguntará o editor Calvino. A guerra contra os livros é dissimulada e teimosa. Os volumes que hoje nos entram pelos olhos a dentro amanhã poderão ser confiscados, e possuir em casa uma humilde brochura de Engels voltará talvez a ser um crime que conduz a presídios e ilhas.
Das perquirições policiais no domicilio de pessoas suspeitas ao governo, talvez nenhuma seja mais estupida do que a referente aos livros de sua biblioteca. Numa estante modesta se alinham oitenta, cem obras amarrotadas, com riscos a lápis indicando a vigília de estudo e o diálogo do leitor com o autor.
Dois policiais tocam nesses livros com uma curiosidade desesperançada; desejariam talvez encontrar estampas pornográficas, que os distraíssem da amolação… Nada disso. São textos frios, em línguas incompreensíveis e trazendo nomes arrevesados; como alguns desses nomes terminam em ov, em ovski e em inski, levamo-los ao delegado, e o cidadão vai também, por via das dúvidas.
Poderia escrever páginas e páginas narrando fatos da guerra ao livro. A primorosa tradução do “Romeu e Julieta”, por Onestaldo de Pennafort, editada pelo Ministério da Educação, teve de ser recolhida porque alguém do governo implicou com uma simples palavra do texto português, aliás, um achado admirável, em correspondência absoluta com o original de Shakespeare.
Érico Veríssimo viu a sua obra apontada à execração pública por um padre alemão de Porto Alegre. Álvaro Lins escreveu um livro sobre Eça de Queiroz e por isso foi demitido de sua cadeira de professor no Colégio Nóbrega, do Recife. Um número da “Revista do Brasil” foi proibido de circular porque dele constava um poema de Vinícius de Morais sobre o Mangue (o Mangue não existe: decretaram as autoridades).
Em Santa Maria da Boca do Monte, Rio Grande do Sul, um poeta anônimo teve o seu livro, “Brado da Liberdade”, censurado previamente e julgado “em desacordo com a legislação que regula matéria da imprensa”; o poeta resolveu publicar a obra com folhas em branco, na parte cortada (Correio do Povo).
O jornal “A Notícia”, hoje democrático, referindo-se a autores nacionais, fez esta pergunta (30.X.1943): “Não lhes parece que Sodoma está de novo pedindo o fogo purificador?…”
Título de um artigo do coronel Arí Maurrel Lobo, no “Brasil-Portugal”, com referencias ao abaixo assinado (14.XI.1944): “chamando a atenção das autoridades”. Ainda “A Notícia” (28.I.1944), batendo na velha e falsa tecla dos livros imorais”: “… o próprio Dip tem no seu regulamento sanções para os casos dessa natureza, reafirmando os objetivos do Código Penal”.
Livros imorais, isto é: livros que não agradam ao governo. Livros que o Dip não publica nem manda escrever nem adquire para distribuição. Segundo Francisco de Assis Barbosa (Correio da Manhã, 18.VI.44), o padre Assis Memória pediu para os escritores modernos “censura policial”. Valdemar Cavalcanti deu a tudo isso um nome que pegou: gestapo literária.
Sob suas garras, muito escritor foi oprimido e muito livro rasgado. Gestapo auto devoradora, pois, segundo se lê na carta de Plínio Salgado, de 28 de janeiro de 1938, “a censura da imprensa… proibiu elogios literários sobre livros de minha autoria” e “no estado do Rio chegaram até a confiscar os livros de minha autoria, que nada tinham a ver com o integralismo: romances, literatura em geral, com graves prejuízos financeiros para os meus editores e a mim particularmente”.
“A mim particularmente…” A queixa verde cobre com sua névoa o cemitério dos livros assassinados.
Revista Sombra (RJ), abril de 1945.
Passado os tempos da ditadura 1930/45 e agudizada em 37, constatada essa perseguição aos livros pelo nosso Poeta, agora entramos em era de retrocesso educacional no país.
Monteiro Lobato que era oponente ao ditador assassino Vargas, dono de vasta obra e editora, vem ocorrendo sumária perseguição aos seus livros transcorridos no mítico Sítio do Pica-pau Amarelo, obra esta que tanto influenciou minha infância.
Não temos mais o DIP e muito menos o DOPS, a GESTAPO atual é impulsionada por uns ditos doutores de num sei o quê, mas sei que são artífices ou meros pau-mandados da turma das narrativas, aquela das narrativas podres e horrendas atuante com todo o furor no globo terrestre.
Que pena, entretanto, Monteiro Lobato terá sempre a minha gratidão por todas as aventuras que passei com Narizinho e sua turma do nosso querido Sítio do Pica-pau Amarelo.
Caro amigo Mauro. A censura corre solta, a sanha do golpe anda de supersônico e o povo delira na alucinação com Jesus no controle.
O que vai acontecer com os delirantes quando o campo de batalha chegar ao Brasil ? E está próximo….
Estamos ferrados.
Monteiro Lobato é defenestrado, agora imagine o homem que inventou o livro no Brasil é tratado como se fosse um zé ninguém.
A mineradora Vale está ocupando toda Itabira e o povo em delírio, não percebe porque suas mentes foram industrializadas no modo nazi alemão.
Triste povo.
Ao fazer críticas à mineradora sórdida fui reprovada com louvor. O que fazer?