Max Weber e o capitalismo pária

Samira Feldman Marzochi*

Dentre os clássicos das Ciências Sociais, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) talvez seja o mais complexo do ponto de vista metodológico. Será um grande desafio partir dele para abordar um tema ainda mais problemático, a relação entre judaísmo e a gênese do capitalismo, e em tão poucas linhas.

Samira Feldman Marzochi

Todos sabemos que um dos principais estigmas atribuídos aos judeus é a suposta predileção pelo dinheiro. Penso que a obra weberiana seja capaz de desfazê-lo, especialmente em três escritos: Ensaios de sociologia, A ética protestante e o espírito do capitalismo e A gênese do capitalismo moderno.

Weber procura estabelecer vínculos históricos entre as religiões e as diferentes éticas econômicas, mas chama atenção para o seguinte: “nenhuma ética econômica foi determinada exclusivamente pela religião”. Isto é, uma ética econômica, ou “os impulsos práticos de ação que se encontram nos contextos psicológicos e pragmáticos das religiões”, teria uma grande margem de autonomia.

Uma ética econômica segue seu curso de modo independente do grupo social que a produziu, desde que encontre condições sociais, políticas, econômicas e geográficas que requeiram sua aplicação. Ela pode descolar-se de uma localidade e espraiar-se, adaptando-se e diferenciando-se por diversas partes do globo. E formas muito semelhantes de organização econômica podem corresponder a diferentes éticas.

Aqui e agora

Neste percurso de difusão e transformação, o estilo de vida de certas camadas sociais tem sempre mais ou menos influência. Mesmo que sua origem seja religiosa, a orientação prática da vida se combina a outras motivações culturais, econômicas e políticas.

As éticas econômicas das religiões surgiriam para atender uma necessidade psicológica muito geral, a de conferir sentido aos infortúnios da vida. Para Weber, “os afortunados raramente se contentam com o fato de serem afortunados. Necessitam saber que têm direito à sua boa sorte, desejam ser convencidos de que a merecem e, acima de tudo, que a merecem em comparação com outros. Desejam acreditar que os menos afortunados também estão recebendo o que merecem”.

Entre os israelitas que viviam sob pressão política, o sofrimento da comunidade, e não do indivíduo ou da classe, tornou-se objeto de racionalização religiosa. O título de “messias” era dado aos salvadores políticos. Por isso, segundo Weber, “a concepção racional do mundo está encerrada no mito do redentor”.

Durante as crises que ameaçavam a continuidade de todo o grupo social, o pensamento puramente mágico ou místico não era suficiente para orientá-lo, convencê-lo dos caminhos de superação e alimentar esperanças em um futuro de liberdade. O traço primordial das éticas de salvação eram as atitudes voltadas ao “aqui e agora” e à sistematização da vida material.

A perspectiva racional do mundo conferia ao sofrimento um valor positivo, e a compreensão ética dos eventos políticos se aprimorou, ganhando autonomia e desdobrando-se em diferentes formas de justificação. Do judaísmo ao cristianismo, catolicismo e, depois, ao protestantismo, quanto maior o peso das camadas cívicas sobre os clãs e castas, mais propício se tornou o terreno ao desenvolvimento das religiões voltadas para a ação.

Influência marginal

No Ocidente, o ascetismo ativo passou a predominar, cada vez mais, sobre outras religiosidades, como as crenças mágicas e o misticismo contemplativo. Ainda que tenha sua origem no judaísmo, desdobrou-se através do cristianismo até culminar no protestantismo, a forma mais individualizada de religiosidade ascética, em que o devoto é considerado um “instrumento de Deus”.

O ascetismo protestante continuou a voltar-se para o mundo pelo trabalho metódico e racional na vida diária, a serviço do Senhor e segundo uma vocação. A conduta cotidiana se torna central para o merecimento da graça divina. Assim fomentou-se, no Ocidente, a racionalização metódica da conduta econômica, fundamental para a gênese do capitalismo.

Os judeus, tão associados à riqueza desde a Idade Média, não teriam produzido quase nenhum ascetismo de tipo ocidental próximo daquele que impulsionou o modo capitalista de produção. Não foi o judaísmo que atingiu o grau extremo de racionalização necessária para levar o capitalismo adiante, mas o protestantismo ascético. Neste, o lucro seria consequência da virtude, enquanto o dispêndio para fins de consumo próprio, submissão idólatra ao mundo. É o puritanismo que confere à riqueza um significado religioso: a retribuição divina pela conduta ascética.

As razões pelas quais o judaísmo não “evoluiu” para uma ética semelhante são, sobretudo, históricas, decorrentes das várias restrições ao pleno exercício das atividades econômicas e profissionais para os judeus. O que lhes restou, como ética de sobrevivência sob as condições impostas, foi a “ingênua aceitação da vida como ela era”, caráter muito diferente do puritanismo que visava a “transformação e dominação racional do mundo” e se orientava contra o desfrute espontâneo da vida.

Nas palavras de Weber, “a posição dos judeus durante a Idade Média pode ser comparada, sociologicamente, àquela de uma casta indiana inserida num ambiente social sem castas: constituíam um povo de párias”. Estavam limitados a participar de um capitalismo aventureiro, especulativo, periférico. A proibição do empréstimo a juros pela Igreja interditava aos católicos este comércio que era, no entanto, imprescindível à economia europeia, tornando-se das poucas atividades permitidas aos que não estavam sujeitos às leis da Igreja.

Velho mercado judeu no centro de Ostrow Mazowiestska, final século 19 – início século 20 (Foto: Boletim ASA)

Por sua vez, o protestantismo adotou da antiga ética judaica apenas o que se adaptasse ao propósito de sistematizar racionalmente o trabalho e o capital, como a hostilidade à magia. Dentre os grandes empresários criadores da organização econômica moderna, quase não se encontram judeus. “Esse tipo era cristão e apenas concebível em solo cristão”. O “fabricante judeu” é um tipo que surge apenas modernamente, e entre uma maioria judaica pequeno-burguesa cada vez mais proletarizada.

Conclui-se, da obra weberiana, que embora o judaísmo tenha contribuído para a formação do cristianismo, sua influência sobre a evolução da moderna ética econômica do Ocidente foi bastante marginal. Os judeus sobreviveram historicamente na periferia da organização econômica capitalista, e não fosse seu tradicionalismo insistente, o judaísmo, que sequer figura entre as religiões mundiais de conversão, já teria desaparecido.

(Artigo publicado originalmente no site ASA – Associação Scholem Aleichem).

*Samira Feldman Marzochi – Profª Drª do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Linha de Pesquisa: Urbanização, ruralidades, desenvolvimento e sustentabilidade ambiental.

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1 Comentário

  1. Muito bem posto a evolução do capitalismo e toda a influência ou não das religiões ocidentais no mercado mundial.
    No período das grandes navegações, é fato, havia a dependência dos capitais e quem os tinha eram os judeus e suas desenvolturas no trato com o comércio, além de não terem a proibição da igreja católica a impedir os negócios.

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