Racismo é barreira para ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas

Foto: Reprodução/
Irene Santos/
Agência Pública

Agência Pública conversou com Petronilha Gonçalves, relatora da Lei nº 10.639 e primeira mulher negra no CNE

Por Bianca Muniz, Danilo Queiroz

Edição: Mariama Correia

Agência Pública – Cerca de 20 anos após sua publicação, mais de 70% das secretarias municipais de Educação do país fizeram pouca ou nenhuma ação para implementar a Lei nº 10.639, que determina a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos das instituições de Educação Básica.

Considerada um importante instrumento para a construção de uma educação antirracista, a lei, promulgada durante o primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), teve como relatora a professora Petronilha Gonçalves, primeira mulher negra a ter assento no Conselho Nacional de Educação.

Décadas depois da publicação da norma, que nasceu p ara combater o racismo enraizado há séculos no Brasil, resgatando “a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, a professora diz que vê mudanças positivas no país, mas que ainda é preciso avançar muito no combate ao racismo e na difusão do conhecimento sobre as contribuições da população negra na construção da nação brasileira.

“Durante muito tempo, para a cabeça de muitas pessoas, as pessoas negras eram descendentes, não de pessoas, mas de ferramentas. Pouco se divulgou, e ainda se divulga pouco, que os escravizados trouxeram tecnologias para o país”, disse Petronilha Gonçalves, em entrevista à Agência Pública. 

Leia trechos da entrevista.

O que motivou a criação da Lei 10.639 e qual era o contexto que justificava a necessidade de uma legislação específica sobre a história e cultura afro-brasileira?

O contexto era o racismo. O racismo brasileiro que existia há séculos e que precisava ser tratado, no sentido de que se conhecesse as raízes da participação da população negra na construção da nação brasileira e também as raízes do racismo para poder combater, porque não dá para mudar 500 anos em poucos meses ou anos.

A iniciativa [de se ensinar história e cultura afro-brasileira] é muito antiga. Foi muitas vezes solitária, outras vezes de grupos de professoras negras e não negras que tinham um projeto de sociedade em que o racismo necessitava ser combatido e superado. É uma iniciativa também importante do Movimento Negro em nosso país.

A Lei fez 20 anos este ano. Qual balanço você faz? Acha que a legislação vem sendo efetiva para combater o racismo no ensino?

É preciso que nas comunidades escolares, os professores e outras pessoas que fazem parte dessa comunidade, como os servidores das escolas, estejam empenhados no combate ao racismo. A lei sozinha não é suficiente para combater o racismo.

Para algumas pessoas, essa estrutura, plantada lá no século XVI, talvez lhe convenha, convenha a seus grupos, por manter um projeto de sociedade em que alguns – pessoas, seus grupos sociais e raciais – seriam mais valorizados do que outros. A história desses grupos de participação na construção da nação brasileira, muitas vezes é escondida, ou desconsiderada, como a participação dos descendentes japoneses, da população negra, por exemplo.

Durante muito tempo, para a cabeça de muitas pessoas, as pessoas negras eram descendentes, não de pessoas, mas de ferramentas. Pouco se divulgou, e ainda se divulga pouco, que os escravizados trouxeram tecnologias para o país. Por exemplo, Portugal tinha um subsolo rico que não sabia, ou não tinha conhecimentos de como explorá-lo.

Então, eles trouxeram escravizados da África, em que o subsolo era rico. E assim, por diferentes ciclos econômicos, essas populações africanas desenvolveram essas habilidades com a agricultura, que aplicavam em suas terras, nas regiões econômicas onde eram escravizados.

Petronilha Gonçalves, relatora da Lei que determina ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas e primeira mulher negra no CNE (Reprodução/Irene Santos)

Eu, Bianca, tenho 27 anos e tive em livros didáticos da escola pública que tratam da colonização do país, em que eu só via o negro como uma condição de exploração, de escravizado. Você vê alguma mudança nessas escolas a respeito uma nova visão sobre o povo negro?

Felizmente, sim. Não o que se desejaria, ainda não. Mas não se pode dizer que se está no mesmo pé de 20 anos atrás. Às vezes, pelo que me dizem, um pouco distorcidas ainda.

Quer dizer, é importante que se aprofunde o estudo da História, não só em relação à participação, evidentemente, da população descendente africana, mas também da população indígena, das diferentes descendências que formam a nação brasileira, mas não valorizando mais umas do que outras. E é o que aconteceu e ainda acontece em alguns lugares.

Algumas pessoas imaginam que a contribuição dos europeus seria mais valiosa, mais importante. No entanto, nós sabemos que não é.

Quais foram e são os principais desafios enfrentados na aplicação efetiva da legislação? 

Eu acho que o principal desafio é justamente o racismo. Não que o racismo seja uma coisa impossível de combater, porque o que está em questão realmente é o que temos como projeto de sociedade, que com muita frequência fortalece a ideia de que há grupos e certas culturas que devem ser mais valorizadas que outras, como é o caso dos descendentes de europeus notadamente no nosso país.

Na sua opinião, existe uma complementaridade entre a lei que estabelece o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e as políticas de cotas, que visa garantir a representatividade da população negra em diversos setores?

Eu diria que elas fazem parte de um projeto de sociedade, que reconhece os diferentes povos que constituem a nação brasileira e valorizam igualmente a contribuição desses povos.

E valorizar implica conhecer as suas histórias e as suas culturas distintas, incentivar o que já acontece no dia a dia, que é o diálogo entre essas culturas, esses modos de ser, essas histórias, sem valorizar mais algumas do que outras.

É um trabalho difícil, sobretudo quando a gente vem com uma tradição de séculos de valorização da contribuição dos europeus, às vezes negando o papel fundamental, no sentido que está no fundamento, dos diferentes povos indígenas.

Além da lei, enquanto política pública, o que mais poderia ser fomentado na educação pública pra avançar mais ainda na direção de uma educação antirracista, de um projeto de sociedade que visa valorizar a população negra?

Prever o combate ao racismo, prever e conhecer as histórias e culturas dos diferentes povos que constituem a nação brasileira.

Como essas legislações e políticas públicas sobre as quais comentamos impactam concretamente nos desafios que a população negra ainda enfrenta, e que são derivados do racismo, como as dificuldades no acesso à saúde e moradia, a questão da violência?

Elas ajudam a compreender que existem problemas e que esses problemas precisam ser resolvidos. E trazem informações, espero que reflexões no sentido de que atitude e contribuição que cada pessoa pode trazer, cada grupo social pode trazer, cada instância política pode trazer.

Agora, depende muito do projeto de sociedade, não unicamente, mas particularmente dos professores?

Não unicamente porque, evidentemente, cada estudante traz consigo o projeto de sociedade da sua família, do grupo social, do grupo étnico-racial a que pertence. Então, exige uma capacidade de diálogo, de compreensão e de busca, conhecer. A gente tem que conhecer os diferentes modos de entender a vida, de construir a cidadania e dialogar. A escola é o lugar.

Para você, o que é necessário para que a resistência na aceitação de elementos da cultura negra, como por exemplo, religiões de matriz africana, e essas barreiras que comentamos de acesso às políticas públicas para a população negra sejam superadas no Brasil?

É conversar abertamente sobre o projeto de sociedade, acho que isso é uma conversa que tem que ser feita nas famílias, evidentemente que nas escolas, nos diferentes níveis de ensino, formulando a pergunta desta forma ou de outras maneiras.

A gente pode ver nos projetos que as escolas, as universidades desenvolvem, os objetivos que têm os planos de ensino, os objetivos que têm os currículos,o plano político pedagógico da escola, da universidade, as atividades que se desenvolvem, e como eu já disse, a forma como as pessoas se relacionam.

De acordo com uma pesquisa do Instituto Peregrino e do Projeto SETA, sobre a percepção do brasileiro em relação ao racismo, mais da metade, 64%, afirmaram que práticas racistas acontecem dentro da escola. Como as escolas podem lidar e combater o racismo?

Bom, eu voltaria ao projeto de sociedade que a escola visa transmitir, e essa é uma discussão que tem que ser feita no nível dos professores, dos demais servidores da escola. E justamente uma pergunta: para que sociedade eu trabalho?

De que forma, a maneira como eu me relaciono com as pessoas, transmite o meu projeto de sociedade? Até no simples, ao cruzar com outra pessoa, se eu viro o rosto, ao ultrapassar essa pessoa, eu estou dizendo para ela, eu não te reconheço. Mas ao reconhecer a presença da outra pessoa, de outro ser humano, cada um de nós está transmitindo um projeto de sociedade.

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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