Dia Nacional da Música Popular Brasileira
Lenin Novaes*
Dia Nacional da MPB? Sim. É ou não é justo que a música popular brasileira tenha data comemorativa? Pois, afinal, a música é uma das mais expressivas referências do Brasil no exterior, aliada ao futebol, que tem em Carmem Miranda e Pelé as maiores representatividades. E a celebração da data é em 17 de outubro, dia de nascimento da pianista e compositora Chiquinha Gonzaga, instituída em 2012. Neste ano de 2017 se comemora os 170 anos de nascimento dela, nascida dia 17 de outubro de 1847 no Rio de Janeiro, onde faleceu em 28 de fevereiro de 1935, aos 87 anos de idade.
Nesta oportunidade, o site Vila de Utopia expressa homenagem a todos que estão direta ou indiretamente ligados à música no país, sejam homens e mulheres músicos, cantores, compositores, produtores, arranjadores, técnicos de estúdio etc. E, em especial, aos artistas musicistas itabiranos. A indústria musical, ajustada às produções independentes, após o colapso do formato que predominou por várias décadas, continua a revelar novos e promissores talentos. Tem, também, é bom afirmar, muita bobagem circulando por aí como moda de consumo, cujo destino é a vala comum.
Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga, é autora da célebre marcinha de Carnaval “Abre alas”, sendo distinguida como a primeira compositora popular e a reger uma orquestra no país. Parte de seu trabalho procurava explorar um ponto de intersecção entre ritmos estrangeiros e nacionais, como a polca, o choro, o tango e as marchinhas carnavalescas. Além de marco na música, ela também teve a vida marcada pela emancipação, sendo abolicionista, divorciada e republicana.
A compositora carioca se destaca na história da cultura brasileira e na luta pelas liberdades no país pelo seu pioneirismo. A coragem com que enfrentou a opressora sociedade patriarcal e criou uma profissão inédita para a mulher, causou escândalo em seu tempo. Atuando no rico ambiente musical no Segundo Reinado, no qual imperavam polcas, tangos e valsas, ela não hesitou em incorporar ao seu piano toda a diversidade que encontrou, sem preconceitos. Assim, terminou por produzir uma obra fundamental para a formação da música brasileira.
Chiquinha Gonzaga é filha de José Basileu Neves Gonzaga, militar de ilustre linhagem no Império, com a forra Rosa, filha de escrava. A menina cresceu e se educou num período de grandes transformações na vida da cidade. Além de ler e escrever, ela aprendeu a tocar piano. Educada para ser dama de salão, aos 16 anos se casou com o empresário Jacinto Ribeiro do Amaral, escolhido por seu pai. Continuou dedicando atenção ao piano, para desespero do marido, que não gostava de música e encarava o instrumento como seu rival.
Inquieta e determinada, Chiquinha se rebelou e decidiu abandonar o casamento ao se apaixonar pelo engenheiro João Batista de Carvalho, com quem passou a viver. O caso resultou em ação judicial de divórcio perpétuo, movida pelo marido no Tribunal Eclesiástico, por abandono do lar e adultério.
A Chiquinha Gonzaga que emerge no cenário musical do Rio de Janeiro em 1877, após desilusão amorosa, maldição familiar, condenações morais e desgostos pessoais é uma mulher que precisa sobreviver do que sabia fazer: tocar piano. Ninguém ousara tanto. Praticar música ao piano, ou até mesmo compor e publicar, não era incomum às senhoras de então, mas sempre mantendo o respeito ao espaço feminino por excelência, o da vida privada.
A profissionalização da mulher como músico (ainda mais aquele tipo de música de dança para consumo) era fato inédito na sociedade à época. A atividade exigia talento, determinação e coragem, qualidades que não faltavam a Chiquinha Gonzaga. A estreia como compositora se deu com a polca “Atraente”, cujo sucesso foi mais um fardo para sua reputação. Atuava como professora em casas particulares e pianista no conjunto do flautista Joaquim Callado. Passou a aperfeiçoar sua técnica com o pianista português Artur Napoleão, também seu editor, e a tentar escrever partituras para o teatro musicado.
Em janeiro de 1885, Chiquinha estreou no teatro com a opereta “A corte na roça”, representada no Teatro Príncipe Imperial, ocasião em que a imprensa se embaraçou ao tratá-la, pois não existia feminino para a palavra maestro. Ao longo da carreira de maestrina, ela musicou dezenas de peças de teatro nos gêneros os mais variados. Em 1889, regeu, no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, um original concerto de violões, promovendo este instrumento ainda estigmatizado.
Era a mesma audácia que movia a militante política, participante de grandes causas sociais do seu tempo, denunciando assim o preconceito e o atraso social. Abolicionista fervorosa, ela passou a vender partituras de porta em porta, a fim de angariar fundos para a Confederação Libertadora e, com o dinheiro da venda de suas músicas, comprou a alforria de José Flauta, um escravo músico.
Na virada do século XIX para o XX, Chiquinha criou a marchinha carnavalesca que a popularizaria, “Ó abre alas”, e obtendo, com isso, um reconhecimento eterno, pois o carnaval jamais a esqueceu. Aos 52 anos de idade, já consagrada, Chiquinha conheceu aquele que iria se tornar seu companheiro até o final da vida, o jovem português de 16 anos João Batista Fernandes Lage, mais tarde João Batista Gonzaga.
O nome da compositora esteve também envolvido em escândalo, desta vez político, quando seu tango “Corta-jaca” foi executado no Palácio do Catete, em 1914. Como autora de músicas de sucesso, sobretudo pela divulgação nos palcos populares do teatro musicado, ela sofreu abusiva exploração de seu trabalho, e tomou a iniciativa de fundar, em 1917, a primeira sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país: a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat).
Chiquinha teve seu trabalho reconhecido em vida, sendo festejada pelo público e crítica. Personalidade exuberante foi dos compositores brasileiros a que trabalhou com maior intensidade a transição entre a música estrangeira e a nacional. Abriu o caminho e ajudou a definir os rumos da música propriamente brasileira, que se consolidaria nas décadas iniciais do século XX.
Recomendo ao público do Vila de Utopia a leitura de Chiquinha Gonzaga: uma história de vida, biografia da compositora e maestrina escrita por Edinha Diniz, da Editora Zahar.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som (MIS). É assessor de imprensa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).