Música sertaneja: um produto cultural com ligações com o agronegócio e a extrema direita
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Na indústria cultural, gênero musical ganha formato padronizado, produção e disseminação em larga escala, enquanto as produções autorais ligadas às manifestações populares esbarram em burocracias e pouco incentivo à produção e divulgação
Por Adriana Amâncio
ASA* – A música sertaneja surgiu em 1929, abordando, inicialmente o universo rural de forma purista e denominada de música caipira. A partir de 1950, o gênero assimila influência de outros ritmos internacionais e em 1980 mergulha de vez no universo da indústria cultural.
Como produto, ao passo que acompanha a modernização brasileira, segundo analisa a mestranda em Comunicação e associada ao Intervozes, Marina Pita, “adquire formato padronizado, que reflete uma cultura hegemônica capitalista e machista.”
Contando com uma estrutura ampla e poderosa de divulgação, as músicas sertanejas, com o passar do tempo, “acompanham e refletem a modernização e urbanização brasileiras”, afirma o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFPE) e autor do livro Cowboy do Asfalto: música sertaneja e modernização brasileira, Gustavo Alonso.
Nesta modernização, está presente um campo mecanizado, mais próximo da realidade do agronegócio, e cada vez mais distante daquele vivido pelas pequenas famílias agricultoras.
Marina enxerga que esse processo dialoga com o latifúndio e com orientações políticas dominantes. “O fato de os grandes meios de comunicação, no Brasil, historicamente estarem na mão das oligarquias, que, em geral, estão ligadas ao latifúndio, a gente pode aí estabelecer uma relação entre a música sertaneja e o agronegócio. O que a gente pode ver é a ausência de abertura para diversas manifestações culturais, favorecendo especialmente a música que paga para tocar”, analisa.
A exposição da música sertaneja, na indústria cultural, ganha o reforço das novelas, que veiculam as músicas em suas trilhas sonoras, dos grandes shows e eventos.
Dono da emissora Tropical Sat 102,5 FM, localizada em Juazeiro, no semiárido baiano, Flávio Ciro considera que a música sertaneja, hoje, é “hiper comercial, de fácil assimilação, mas também fácil de ser esquecida”.
Para ele, o gênero incorporou rapidamente a era das redes sociais, traduzindo a perspectiva da vida perfeita, além de obedecer a um padrão, que faz com que esta seja sucesso de Norte a Sul.
“A posição da rádio é tocar o sucesso e a gente toca a menos pior! A temática [das músicas sertanejas] atuais não tem nada a ver com o pequeno produtor rural, é coisa suntuosa, que tem a ver com o mundo dos grandes negócios agropecuários”, analisa.
O professor e escritor Gustavo Alonso afirma que a música sertaneja retrata a migração do povo rural para a área urbana e é feita para ser consumida na área urbana.
“Um dos grandes sucessos sertanejos Saudade da minha terra, o cara canta ‘de que me adianta viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar’. Quer dizer, ele canta a saudade da sua terra, mas canta estando na cidade”, relembra.
Ao contrário, os entusiastas da música caipira optam por manterem-se ligados às raízes, considerando a música sertaneja ‘alienante ou o barbitúrico dos operários’, pondera Gustavo.
A relação com a política
“A música sertaneja é o Brasil. Onde o Brasil vai, a música sertaneja vai também”, afirma o professor Gustavo. Segundo ele, na época da Ditadura, existiram músicas ufanistas, a exemplo de Minha Pátria Amada, de Leo Canhoto e Robertinho.
Algumas outras músicas também abordaram, anos mais tarde, a relação com a redemocratização. “A gente vê alguns artistas ainda hoje, o Zezé de Camargo defende o voto impresso, Sérgio Reis defendeu o ataque ao STF. De fato, uma parte considerável da música sertaneja apoiou o Bolsonaro, são em grande parte conservadores, assim como são outros segmentos”, explica Gustavo.
O pesquisador cultural e autor do livro a ser lançado Funk na batida: baile, rua e parlamento, Danilo Cymrot, lembra que a música, assim como o cinema são expressões artísticas que sempre tiveram uma relação direta com o poder.
“Muitos cantores sertanejos são, inclusive, empresários e pensam como a cabeça de latifundiários”, pontua o pesquisador, reforçando a sinergia entre a música sertaneja e o atual representante do Governo Federal.
O que diz a lei
Segundo o artigo 215 da Constituição Federal, o Estado deve “garantir a todas as pessoas o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
A Lei Rouanet, por exemplo, uma das ações voltadas para fazer valer na prática o artigo mencionado acima, é, na avaliação de Marina Pita “problemática porque é burocrática e, muitas vezes, transfere para o privado a capacidade de selecionar os projetos, dificultando o apoio às ações de valorização da manifestação popular”, crítica.
Uma das regras das concessões de rádio previstas pelo Código de Telecomunicações do Brasil (CTB), prevê a veiculação de músicas autorais, produzidas por artistas locais na grade de programação. Na prática, a veiculação deste tipo de conteúdo não acontece, pois prevalecem os interesses comerciais. Ainda de acordo com Marina, “como não há regulamentação e regulação dos meios de comunicação, o descumprimento dessas regras é muito difícil de ser punido”, analisa.
Para além da burocracia, complementa Marina, as condições econômicas atuais do Brasil, a exemplo da inflação alta, têm impactado na captação de recursos por parte dos fundos de cultura, responsáveis por lançarem editais de fomento.
Por outro lado, com o início da pandemia, a música sertaneja da indústria cultural foi favorecida pelas lives realizadas em parceria com grandes empresas do agronegócio. Um bom exemplo é a live que o cantor Gusttavo Lima, conhecido como Embaixador do Agronegócio, realizou no dia 18 de outubro de 2020, em meio a um grande campo de soja, e em parceria com uma grande marca do ramo do agronegócio.
Na contramão da indústria cultural
Em 1999, cerca de três mil organizações com atuação nos noves estados do Nordeste e em Minas Gerais, representadas pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), passaram a difundir o projeto de Convivência com o Semiárido, que afirmava que a região, se implementadas políticas adaptadas às condições locais, com base na estocagem de água, sementes e alimento animal é viável para se viver.
Algum tempo depois, surge uma manifestação popular, que retrata, por meio da música, essa nova perspectiva da região. Um dos marcos desta manifestação é o CD Belo Sertão, produzido pelos artistas Roberto Malvezzi, Targino Gondin e Nilton Freitas, em 2013.
Agente da Comissão Pastoral da Terra e militante da convivência com o Semiárido, há mais de quatro décadas, Roberto Malvezzi, mais conhecido como Gogó, transpôs para a suas canções, a sua visão sobre as riquezas, belezas e potencialidades do Semiárido.
Se de um lado, a versão de Menino da Porteira, de 1996, interpretada por Sergio Reis, diz: “Quando a boiada passava e a poeira ia baixando, eu jogava uma moeda e ele saía pulando”.
Do outro, a canção Guardar a chuva, de Roberto Malvezzi, parte do CD Belo Sertão, diz: “colher a água, reter a água, guardar a água quando a chuva vai do céu, guardar em casa, também no chão, e ter a água se vier a precisão.”
Músicas como estas tornaram-se ferramentas pedagógicas muito presentes em atividades de formação realizadas pelas organizações membro da ASA. “A educação popular nasce com a música. Eu quis fazer uma música dialogando com a proposta de convivência com o Semiárido, tentando fazer um debate na linguagem musical, tentando fazer uma nova leitura sobre o Semiárido, a sua cultura, a sua biodiversidade, com o seu povo”, explica Roberto.
O jornalista e radialista Raimundo Alves, autor da pesquisa Música para a Convivência com o Semiárido, a partir das suas pesquisas, considera que essa música que reflete o novo Semiárido também ganhou força através do trabalho das organizações da sociedade civil disseminando essas músicas e das rádios comunitárias, que surgem como espaços nos quais as músicas ganham força.
“Essas músicas desmistificaram a ideia do Nordeste seco, falando que na região chove e que o estoque da água a torna viável. Os agricultores diziam que a música retratava a sua vida na roça, fortalecendo a crença deles naquilo que estavam fazendo na construção de um novo Semiárido” destaca Raimundo.
De acordo com o Roberto Malvezzi, realizar um trabalho autoral na linha da convivência com o Semiárido não é fácil, pois se trata de uma produção muito específica e que não guarda nenhuma relação com a indústria cultural.
Há, por exemplo, o processo de gravação, que envolve aspectos para garantir a qualidade técnica. “A gente fez o Belo Sertão em uma espécie de vaquinha das organizações, o que permitiu as canções serem usadas nas atividades e programas de rádio. Me chama atenção como a música Guardar a Chuva seja tão conhecida no Semiárido, porque ela foi tocada pelas organizações”, observa Roberto.
*Reportagem publicada originalmente pelo portal da ASA – Articulação Semiárido Brasileiro