Universidade reproduz relações de poder da sociedade machista e patriarcal

Especialistas de várias universidades participaram da audiência nesta terça (2)

 Foto: Sarah Torres/ALMG

Conclusão de reunião na Comissão da Mulher é que alteração nos números de assédio sexual nesses espaços passa por alterar estruturas de poder, tornando-as mais igualitárias

ALMG – As relações de poder no ambiente universitário repetem o que acontece fora, na sociedade, marcada por uma cultura conservadora, machista e patriarcal. Para alterar esse quadro e pelo menos reduzir os números de assédio sexual nessas instituições, é necessário mudar também, mesmo que parcialmente, as estruturas de poder. Isso passa pela busca da participação paritária de homens e mulheres nesses espaços, hoje majoritariamente ocupados por homens brancos.

Essas conclusões foram extraídas da audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, nesta terça-feira (2), que debateu o tratamento dado a denúncias de assédio sexual e outras violências contra mulheres nas instituições de ensino superior.

A reunião foi solicitada pela deputada Bella Gonçalves (Psol), que, em 14 de abril contou ter sido vítima de assédios de Boaventura de Sousa Santos. O professor português era orientador dela no doutorado na Universidade de Coimbra, entre 2013 e 2014. Após denúncias de várias alunas, ele foi afastado da direção do Centro de Estudos Sociais da universidade. A deputada pretende formatar um projeto de lei na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) sobre o tema.

Como a mudança nas estruturas de poder está longe de acontecer, as mulheres que denunciam o assédio acabam sendo revitimizadas, conforme relatou Natalia Lisboa, pró-reitora de Assuntos Comunitários e Estudantis da Universidade Federal de Ouro Preto. “O fogo segue queimando quem está denunciando”, lamentou ela, completando que a universidade é o segundo lugar onde ocorrem mais assédios, só perdendo para as bases militares.

Ela afirmou que, para lidar com as denúncias de assédio, a Ufop já conta com a Ouvidoria, que aplica punições efetivas contra os agressores. E essa conquista só foi possível, em parte, porque a instituição tem uma reitora mulher, em seu segundo mandato. Outro avanço citado foi a proibição de trotes desde 2017.

“Sempre falamos com as mulheres que nos procuram para denunciar: ‘Você não é louca nem burra e nem está exagerando’; o direito tem que ser praticado numa perspectiva contra hegemônica”, contou Natalia Lisboa.

Investidas sexuais

Cláudia Mayorga citou casos de professores que prometem bolsas de pesquisa e extensão em troca de relações sexuais com alunas (Foto: Sarah Torres)

Cláudia Mayorga, pró-reitora de Extensão da UFMG, apresentou situações em que esse assédio fica evidente. Há casos de professores que prometem bolsas de pesquisa e extensão em troca de relações sexuais e punem alunas que não atendem a investidas sexuais deles. No caso de professoras, muitas, quando começam a subir nas carreiras, são boicotadas por colegas homens e acabam prejudicadas. Já em relação a estudantes, há veteranos que se aproveitam das calouras.

Para conter os desvios, a UFMG publicou em 2016 uma resolução sobre direitos humanos, em que tipifica as várias formas de violações, como violência psicológica, assédio sexual, racismo e outras. Também na universidade, foi proibido o trote há alguns anos. Na opinião da professora, é importante que essas normas façam parte da vida cotidiana e para isso, é importante criar comissões de acompanhamento, que pensem em ações educativas, além das punitivas.

Estupros

Pesquisadora sobre gênero, a professora da Unimontes Carla Ramalho lembrou que em 2022, foram registrados 822 mil estupros. Entre os casos computados está o de um professor de história dessa universidade que assediava alunas e é acusado de estupro de várias delas. Na avaliação de Carla, essa situação se repete porque há um excesso de poder masculino que vem garantindo ao agressor a “certeza da impunidade”.

Outro problema enfrentado pelas mulheres, na avaliação de Silvani Valentim, coordenadora de Gênero, Raça, Ações Afirmativas e Identidades do Cefet-MG, é que as formas de assediar e oprimir e deslegitimar estão ficando mais sofisticadas. Isso porque as mulheres estão assumindo cada vez cargos de poder.

Opressão na produção do conhecimento

Suely dos Santos, coordenadora da Florence Consultoria em Relações Étnico-Raciais e de Gênero, disse que mulheres negras como ela são vítima das três formas de opressão mais fortes, envolvendo raça, gênero e classe. Falando de sua própria experiência, lembrou que sofreu assédio moral, tentativa de extrativismo intelectual, desqualificação intelectual e racismo no curso de Psicologia da UFMG.

E explicou que a estrutura de produção do conhecimento na academia tem uma lógica opressora. Na base, ficam professores da graduação, com pesquisas de menor impacto. Depois, vem os professores da especialização, com trabalhos de médio impacto. Acima, os professores de mestrado e doutorado, com pesquisas de alto impacto. E no topo, estão as poucas pessoas consideradas teóricas, normalmente homens brancos, que coordenam doutorados e constroem teorias e métodos de pesquisa.

Ela ressalta que para se construírem essas teorias, a matéria-prima das pesquisas das ciências sociais e humanas são as mulheres, que representam os principais indicadores sociais, especialmente as negras. “Muitas pessoas, para permanecer no topo, acionam as que estão no meio da pirâmide e oferecem alguma benesse; essa é uma das formas de opressão”, observou Suely, qualificando o campo de produção do conhecimento como “o olho do furacão do poder”.

Poder deve ser exercido para a transformação

Na avaliação de Mariana Assis, professora da Universidade Federal de Goiás, para mudar as atuais relações de poder nas universidades, é fundamental lutar pela participação paritária entre homens e mulheres nos espaços, observando ainda o critério racial. “Maioria nas universidades é formada por mulheres, mas poucas estão no poder”, lembrou.

Outro ponto sugerido pela docente é mudar a visão predominante nos procedimentos administrativos adotados nos casos de assédio: “O agressor é colocado como sujeito central e a vítima tem papel marginal e é o tempo todo avaliada e colocada no banco dos réus”. Ela defende que os processos sejam centrados na vítima, que deverá ser ouvida, acolhida e ter legitimada sua história.

Recursos 

Com entendimento semelhante, Elke Pena, professora e Pesquisadora do Instituto Federal de Minas, em Ouro Preto (Central), apresenta várias propostas para reverter a situação atual. Em primeiro lugar, defendeu a garantia de recursos no orçamento das universidades para o combate ao assédio e o oferecimento de bolsas para estudar a temática de combate a violência de gênero.

Por fim, propôs a criação de esferas de acolhimento das vítimas, mas com treinamento da equipe que atende. E a revisão dos mecanismos de responsabilização dos agressores. “Quando a instituição pratica o silenciamento ela também se torna responsável pelo delito”, concluiu.

Em complemento, Vitória Izaú, professora da Uemg, sugeriu a elaboração de uma lei que proteja os cargos das mulheres vítimas de assédio. “Hoje, elas não denunciam, por terem medo de perderem seus cargos ou até mesmo seus empregos”, considerou. Ela explanou que essas formas de retaliação são definidas como imagens de controle, ou seja, mecanismos de que se vale uma cultura opressora para evitar que as denúncias aconteçam.

Deputadas unidas contra o assédio

A deputada Bella Gonçalves afirmou que a pauta contra o assédio sexual é uma das muitas que deve unir as parlamentares da ALMG independentemente de partido ou ideologia. “Existem mais pautas que nos unificam do que as que nos dividem; tem que ver meios de nos organizamos para combater o machismo e o racismo estruturais”, disse.

Declarou ainda que muitas estudantes são vítimas de assédio como ela, mas a maioria acaba desistindo de continuar, ampliando a evasão escolar e limitando suas oportunidades profissionais. E citou pesquisa do Data Popular mostrando que 46% das estudantes universitárias conhecem casos de alunas que sofreram violência sexual nesse ambiente. “Essa realidade precisa mudar e vai mudar”, afiançou.

A deputada Macaé Evaristo (PT) acredita que os casos de assédio nas universidades se ampliaram com o maior acesso de pretos, indígenas e pardos. Quando chegam, esses segmentos acabam caindo em uma relação de submissão. Na outra ponta, os donos do poder, professores e orientadores, para defenderem seus privilégios, agem de forma machista e racista.

Também a deputada Alê Portela (PL) parabenizou a colega pela reunião, concordando que o debate sobre o combate à violência sexual contra a mulher não é ideológico. “Nós, conservadores, também apoiamos esta pauta e não compactuamos com nenhum tipo de violência sexual”. Já a deputada Ana Paula Siqueira (Rede), elogiou Bella Gonçalves pela audiência e defendeu a criação de novas políticas públicas e estratégias para evitar que outras mulheres passem por isso.

 

 

Posts Similares

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *