Do livro Carvalhos – memórias de minha aldeia II

 Foto: Acervo da família

Por José Teófilo Carvalho

Casos de Sô Carvalho

A faquinha[1]

Como já contei, minha família recebia muitas visitas: parentes, conhecidos e amigos dos conhecidos. Elas adoravam ouvir meu avô contar “causos”, enquanto preparava seu cigarro de fumo desfiado, enrolado na palha de milho. Aproximando das pessoas, distraidamente, vovô Carvalho apontava uma faquinha de cabo de madeira para elas e ia logo repetindo as velhas histórias:

‘Oh! oh! oh! Eu tenho quatro filhos homens e duas filhas mulheres. Juscelino, o mais velho, já morreu; João e José Assunção são barbeiros e moram em Itabira; Nico, o mais novo, mora comigo; Regina é casada com João da Cruz, filho de Mariano Gomes; e Maria Pedra é casada com Zé Pantaleão, filho de Gaspar de Oliveira.’

Enquanto contava essas histórias, o visitante. ia se afastando devagarinho, com medo da faquinha que ele apontava contra o peito do sujeito, enquanto vovô cortava o fumo. Era só o gesto espontâneo ao falar, sem perceber a ameaça ao outro. Coitado, era incapaz de matar uma galinha. Era a simplicidade em pessoa. Mas, quem não o conhecia ficava espantado e achava melhor não se arriscar…

A todos contava detalhes de sua vida difícil na roça. Tinha orgulho da casa de pau a pique, com chão de terra batida e telha de barro, construída com braúna retirada no próprio terreno. Seu cunhado e meu avô materno, João Batista, foi o carapina: lavrou os esteios, serrou as tábuas para as portas, janelas e marcos de porta, armou as madeiras de telhado e das paredes com ripas de taquaraçu; teceu o forro de taquara lisa, confeccionou ainda as camas, os catres, mesas e cadeiras em madeira de lei. Todas as madeiras eram cortadas na capoeira do terreno: braúna, jacarandá, jatobá, sucupira e angelim. Para as ferramentas, cabo de mulato; para a engenhoca, camboatá ou garapa.

A natureza lhe provia todas suas necessidades básicas: as roças de milho, de feijão e de amendoim; um arrozal no brejo; os pés de abóboras variadas e de melancia, plantadas nas terras de formigueiro nas beiras das roças; o quintal de laranjas, mangas, abacates, canas de várias espécies para a moagem na engenhoca de madeira; algumas poucas galinhas soltas, uns porcos no chiqueiro e uma horta completavam tudo que ele precisava.

Da cidade só vinham a querosene para lamparina e, uma vez ou outra, alguma carne com osso – costela ou suã bovinas –. Ah, e o remédio manipulado pelo farmacêutico Nilo Barbosa…Por tudo isso, era um homem de muita fé em Deus e muito grato a tudo e a todos. O terço em família fazia parte da rotina diária, em família ou com visita. Por tudo isso, ele era um homem feliz. Ele tinha outro conceito de riqueza – uma vida minimalista com que muitos sonham hoje.

Família em festa: 1ª fila: Luiz, Zefa com Zé Marcos no colo, Vovô Carvalho, M. Raimunda (Naná), Nair de Oliveira (Naná), Almira. 2ª fila: Ma. Martins (Lica), João Carvalho com Ana P. Carvalho (1947).

 Enterre amanhã[2]

Vovô Carvalho era pragmático nas decisões. Certa vez, tia Maria Pedra teve filhos gêmeos, ambos homens. Os dois nasceram prematuros em sua casa de roça, com auxílio de uma parteira, como era costume na época. Não existia pré-natal e nem acompanhamento médico na gravidez.

As mulheres trabalhavam duro em casa, cuidando dos filhos, levando comida para o marido na roça, buscando lenha, moendo cana na engenhoca de madeira e na capina da roça até a véspera do parto. Acontece, porém, que um dos bebês não resistiu e morreu logo após o parto. Foi batizado em casa mesmo e passou a fazer das estatísticas de mortalidade infantil dessa época. Como morria criança!

Meu pai foi à cidade buscar as mortalhas: pano para o caixão, alças, forro, prego e tachinhas. Meu avô João Batista, o carpinteiro, faria o caixão. Era já tardinha do mês março e as chuvas não davam trégua. O único jeito para ir à cidade era a pé ou a cavalo.

A morte no Morro da Sela era um acontecimento, ninguém ia ao trabalho. Do velório ao enterro todos participavam e davam total apoio à família do falecido. O luto era coletivo. O tempo não era problema nessa época, a vida ia devagar como no poema de Drummond. Quase todos os moradores tinham algum laço de família.

Meu avô, vendo aquela movimentação de meu pai para ir à cidade, foi taxativo: ‘Nico, deixe tudo para amanhã. Assim, você traz material para o enterro dos dois.’ O outro sobreviveu e está vivo até hoje.

Lembrei-me desse caso porque, de certa maneira, somos todos sobreviventes: de uma infância sem vacina e, recentemente, da pandemia que assolou a humanidade com a Covid-19. Tivemos todas as doenças infantis: Sarampo, Catapora, Coqueluche, Difteria e Varíola. Por sorte, a maioria passou ilesa pela Paralisia Infantil e outras doenças como Hepatite, Gripes, Meningite, Pneumonia, Febre Amarela, Rubéola e uma quantidade enorme de doenças que sequer conhecíamos na época.

A gente só ia ao médico quando os chás caseiros não mais davam conta de uma doença. Ir ao médico adiantava pouco, ele nada tinha de informação do paciente que, às vezes, já estava num estado grave de doença que o médico nada mais podia fazer. Morrer era descansar… E como morria gente. Vovô Carvalho dizia com óbvia sabedoria: ‘novo morre, mas velho não escapa’. Sabia das coisas.

O terço[3]

Rezar o terço lá em casa era preceito obrigatório todos os dias. Estando apenas a família ou alguma visita também. Um dia era meu pai que puxava o terço; outro, era minha mãe. Meus irmãos, cansados da escola e da lida na roça, não gostavam muito de rezar e se distraíam com qualquer coisa: um vagalume, uma barata no buraco da parede, um carro passando na estrada ou até o cochilo de alguém. Mas, a gente não se podia dormir sem rezar o terço em família. Era uma obrigação como almoçar ou jantar. Isso era costume em quase toda vizinhança.

Às vezes, o terço era atravessado por interrupções nada piedosas: ‘Ave Maria… acorda Antônio Carlos, … cheia de graça, o Senhor é convosco; … você está cochilando, Benigno; … bendita sóis vós entre as mulheres; … pare de brincar, João Pedro; … e bendito o fruto do ventre Jesus’. E assim por diante.

Já, minha tia Maria Pedra, muito concentrada, articulava bem as palavras. Diziam que ela falava espevitado. Muito piedosa e rezava o terço devagar com meu avô. Minha tia dizia: ‘Ave Maria, cheia de graça; o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito o fruto do vosso ventre, Jesus’. Articulava bem as palavras, falava pausadamente, com toda calma que lhe era peculiar (± 13 segundos).

Vovô, ao contrário, apressado, rezava rápido, cortava as palavras ou as fundia, como bom mineiro, e respondia assim: ‘Santa, …, por nós, …cador, … samorte, amém’ (± 3 segundos).

De qualquer maneira, o terço deles durava menos do que o nosso. Deus devia compreendê-los do mesmo jeito. Afinal, o que vale é a intenção e aquelas eram almas puras, eram incapazes a fazer mal a alguém!!! Pensando bem, ele estava certo. Depois de um dia de trabalho na enxada, nem é preciso rezar, você está purificado e em paz com Deus.

Hoje, me pergunto: por que a gente precisa rezar em voz alta, se Deus está em toda parte e lê os meus pensamentos? Deus não deve ser surdo. Não sei o porquê, mas aprecio muito o silêncio. Gosto muito dessa ideia: “No início é o silêncio. A Linguagem vem depois”[4] (ORLANDI, 2007). A ideia é que as palavras é que preenchem o silêncio; sem elas, é o silêncio que existe de fato.

Generoso[5]

João Martiniano de Carvalho nasceu e cresceu em São Domingos do Prata. Exercia em Itabira a profissão de barbeiro e cabelereiro. Seu salão ‘Estrela Solitária’ já demonstrava o tanto que ele amava o Botafogo, seu time do coração.

Não era para menos, o Botafogo era também a base da Seleção Brasileira, lá pelos anos 1960 e 1970. Quando vejo esse time lutando para se manter hoje na série A e, outras vezes, disputando a série B do campeonato brasileiro, imagino a decadência dessa equipe. Isso quando jogos da seleção brasileira parava o país, hoje, não.

Graças ao meu tio, tornei-me também torcedor do Atlético Mineiro, sua outra paixão nas Minas Gerais. Em Itabira, ele acompanhava com prazer os times da cidade: São Cristóvão e Grêmio, dois times de várzea de Itabira. Pouco se importava com o Valeriodoce.

Casado à primeira vez com Maria Paulina, com quem teve um filho, ambos falecidos. Tio João casou-se novamente com Maria Martins (Lica). Ambos marcaram profundamente minha vida e os considero meu segundos pais. Acolheram-me em sua casa para eu continuasse a estudar, num momento difícil de minha vida. Jovem, imaturo, inexperiente, recém-saído do seminário, cursava o 2º ano do Ensino Médio (Científico, na época).

No Prata, só havia curso normal. Para eu continuar a estudar, teria de mudar para outra cidade. Já com dezoito anos, precisava trabalhar para ajudar meus pais. Conversamos e eles disseram: ‘você não vai parar, vá lá para casa e arremataram: onde comem dez, comem onze’.

Fui sempre tratado lá como um filho nesse período. Tenho por eles imensa gratidão e reconheço que muito do que consegui profissionalmente devo a ele que me abriu a porta da casa como um filho e me possibilitou a continuar a estudar, numa época de escassez de boas escolas públicas.

Meus tios eram as pessoas mais generosas que conheci, ajudavam todo mundo. E não viviam em situação financeira tão folgada, mas tinham muita generosidade e desapego. A casa deles tinha sempre alguma visita, vinda de outra cidade. E não eram poucos. Os moradores da casa cediam suas camas aos visitantes, num gesto de camaradagem, de generosidade. Quem faz isso hoje?

Na época em que não existia o SUS, eles levavam qualquer parente ou conhecido doente para sua casa, arranjavam médico por sua conta própria; traziam para Belo Horizonte, se necessário; compravam os medicamentos e devolviam a pessoa sã em sua casa, pagando-lhe inclusive as passagens.

Em toda minha vida, jamais vi alguém fazer algo igual pelo outro como meu tio. Deixava o salão de corte de cabelos por conta dos filhos e lá ia cuidar dos outros. Era, acima de tudo, humano e depreendido de bens materiais.

Como meu pai de quem era irmão, tinha uma boa relação com todos e fez muitos amigos. Quando eu era criança, adorava sua visita, pois era garantia de bala, biscoitos e pão. Ele era muito carinhoso, sabia cativar ao pequenos e essas guloseimas eram raras no Morro da Sela. Ele adorava queijo Minas e dizia que queijo bom cheira a ‘chulé’…Era sua teoria gastronômica.

A lição que me deixou é que não é preciso ter muito para repartir. Teve uma vida plena, fez muitos amigos. Era exímio dançarino, marcava quadrilha e, por onde passou, deixou sua marca: simpatia, desapego e generosidade. Já debilitado pela diabete, sofreu um infarto, em São Domingos do Prata, dia 28 de maio de 1973, aos 63 anos de idade. Estava lá para a missa de ano da morte de seu sogro. Foi sua última viagem…

Quando me lembro dele e em suas realizações, imagino que ele tenha vivido uns noventa ou cem anos. Viveu plenamente e realizou, numa curta vida, o que muitos não conseguem vivendo muito mais. Não era rico, trabalhou até o final da vida, mas teve uma vida confortável para os padrões da época. Contudo, generosidade lhe sobrava e hoje anda tão em falta.

Referências

[1] CARVALHO. José Teófilo de. In: Carvalhos: memórias de minha aldeia. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.40-41.

[2] CARVALHO. José Teófilo de. In: Carvalhos: memórias de minha aldeia. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.42-43.

[3] CARVALHO. José Teófilo de. In: Carvalhos: memórias de minha aldeia. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.48-49.

[4] ORLANDI, Eni. P As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. 6ª ed. Campinas-SP: Ed. Da Unicamp, 2007, 5ª reimpressão: 2018.

[5] CARVALHO. José Teófilo de. In: Carvalhos: memórias de minha aldeia. – São Paulo: Peripécia, 2022, p.86-88.

*José Teófilo Carvalho é professore e escritor

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