Ataque golpista tem digitais da Lava Jato, diz pesquisador
Supremo Tribunal Federal é tomado por golpistas
Foto: Gabriela Biló/ Folhapress
Para Fábio de Sá e Silva, que analisou postagens da operação, Moro e Deltan alimentaram discurso contra instituições democráticas
Por Uirá Machado
Folha de S.Paulo – Autor de estudos sobre a Lava Jato, o pesquisador Fábio de Sá e Silva enxerga as digitais do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol nos eventos do dia 8 de janeiro, quando apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) avançaram sobre Brasília numa tentativa de golpe de Estado.
Primeiro, diz Silva, elas aparecem quando a operação Lava Jato começou a sofrer derrotas na Justiça e subiu o tom contra os tribunais, sobretudo contra o STF (Supremo Tribunal Federal).
“A Lava Jato acelera e fomenta uma indisposição de parte da sociedade contra os poderes instituídos. Ela reforça uma ideia de que todas as instituições estão contaminadas pela corrupção”, diz Silva, professor de estudos da Universidade de Oklahoma, nos EUA.
Depois, num segundo momento, quando ganha força a ideia de que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não teria legitimidade para enfrentar Bolsonaro, como se sua saída da prisão e sua habilitação eleitoral fizessem parte de uma grande trama cujo desfecho seria garantido pelas urnas eletrônicas, supostamente fraudulentas.
Em entrevista à Folha, Silva também diz que é cedo para avaliar a conduta de Alexandre de Moraes, do STF, na condução de processos contra atos antidemocráticos e fake news. Mas afirma que, em comparação com Moro, o ministro tem à disposição instrumentos jurídicos melhores e os utiliza de maneira mais inteligente.
O sr. argumenta em um estudo que o “fora STF” nasceu com a Lava Jato e que o discurso anticorrupção de membros da força-tarefa foi se transformando em ataques às instituições democráticas. Na sua visão, há relação entre isso e a intentona golpista em Brasília?
Sim. Eu vejo como uma linha de continuidade. É um processo de mudança política que foi acontecendo no Brasil, com o centro de gravidade da política se movendo à direita até a consolidação de uma extrema direita. E é difícil, para mim, separar a Lava Jato disso, porque ela deu uma contribuição grande.
De que maneira?
A Lava Jato se apoiava juridicamente em teses controvertidas, algumas das quais cruzavam as linhas do que é razoável na interpretação da legislação, e lidava com um histórico legislativo recente, então não tinha jurisprudência consolidada. Era uma arena de disputa.
Dentro dessa disputa, tem uma retórica muito forte do Dallagnol no sentido de envolver a sociedade no combate à corrupção. É claro que é importante envolver a sociedade no combate à corrupção, mas isso foi feito de modo a colocar a opinião pública contra os tribunais, para forçar os tribunais a acolher as teses que a Lava Jato elaborava. Eles inclusive usaram uma estratégia de comunicação pesada, em contato com a mídia e pelas próprias redes sociais.
Num primeiro momento, o sistema de Justiça cede. Cometem-se barbaridades na Lava Jato, como o grampo ilegal da ex-presidente Dilma Rousseff com o atual presidente Lula. O Moro pede escusas e não perde a jurisdição dos processos.
Mas, quando a Lava Jato sofre alguns reveses, há uma subida de tom contra os tribunais. E, com isso, ela acelera e fomenta uma indisposição de parte da sociedade contra os poderes instituídos. Ela reforça uma ideia de que todas as instituições estão contaminadas pela corrupção, de que os tribunais superiores são coniventes com isso. Não só contra o Supremo Tribunal Federal, mas também contra o Congresso.
E isso a gente observa nos dados. Estou falando antes de Bolsonaro assumir esse discurso no governo. Alguns eventos foram mais catalisadores disso. O indulto do [Michel] Temer, por exemplo, foi bastante explorado pelo Dallagnol. Ele fez diversas postagens. E o tom dos comentários sobe muito.
É quando começa a aparecer discurso de intervenção militar no STF, “vamos sitiar o STF”, “se forem 200 mil pessoas em Brasília cercar o prédio, eu duvido que eles vão continuar decidindo assim” etc.
É possível comparar esse evento aqui no Brasil com a invasão do Capitólio nos EUA?
Ambos envolveram violência contra os poderes instituídos e ambos estão fundados numa mesma coisa, na “big lie”, uma grande mentira. No caso do [Donald] Trump, foi a acusação de fraude eleitoral nos estados. No caso do Brasil, a ideia é mais complexa: começa com uma trama para soltar o Lula, para que ele pudesse concorrer nesse sistema eleitoral em que as urnas seriam fraudadas para derrotar Bolsonaro.
E aí tem as digitais do Moro e do Dallagnol. Já na política, eles usaram a soltura do Lula como uma plataforma para acusar o STF de beneficiar indevidamente o [então] ex-presidente. O Dallagnol, inclusive, elaborou a noção do “descondenado”, que aparece muito no discurso das pessoas que estão pedindo golpe.
Óbvio que, quando se olha isso objetivamente, é uma argumentação que não tem sentido. Até porque o [ministro Edson] Fachin anulou condenações do Lula numa tentativa de preservar a Lava Jato. Ele queria evitar a discussão da suspeição, e a tese da incompetência já estava estabelecida no STF, tanto que alguns casos tinham sido transferidos de Curitiba para outros tribunais.
A soltura e a elegibilidade do Lula não têm nada de armação, nada de ilegítimo. São decorrência natural de três fatores: a decantação de algumas questões jurídicas; as trapalhadas da Lava Jato, depois expostas com a Vaza Jato e a operação Spoofing; e a ida do Moro para o governo Bolsonaro.
A ida do Moro e do Dallagnol para a política contradiz o discurso antipolítica que eles sustentavam?
Não acho que seja plenamente contraditório. Eles desvalorizam a política que está aí e, ao mesmo tempo, se vendem como pessoas que vão imunizar essa política, que vão agir em defesa do interesse público. Ou seja, com o discurso antipolítica você cria um problema para vender uma solução, e a solução é você.
E é preciso ponderar que tanto Moro como Dallagnol escolheram caminhos políticos que estão muito bem situados à direita ou à extrema direita. Ambos têm agendas profundamente conservadoras. E, no caso do Moro, o empreendimento é familiar, porque a Rosângela [esposa de Moro] também vai para a política.
Qual sua avaliação da passagem do Moro no Ministério da Justiça?
É trágica. O Moro tem as digitais em algumas das coisas mais terríveis que aconteceram nesse período. Na primeira semana, ele assina os decretos de armas. Depois, dá início a uma prática, que depois ganhou mais densidade sobretudo com o [também ex-ministro da Justiça] André Mendonça, que é a perseguição de críticos do governo.
Ele também tem declarações terríveis. Por exemplo, quando teve denúncia de tortura num presídio federal, ele dizia que isso era apenas o “rule of law” [Estado de Direito, ou primado da lei], expressão que ele adora usar de forma distorcida.
Ele foi diferente dos dois sucessores, André Mendonça e Anderson Torres?
Vejo muita semelhança. A diferença, se existe, é que Moro tinha pretensões políticas mais elevadas. E isso o colocou em rota de colisão com Bolsonaro.
Como essa trajetória do Ministério da Justiça sob Bolsonaro termina no decreto golpista encontrado na residência de Torres?
Num projeto com a FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo, a gente estuda o que chamamos de legalismo autocrático, que é o uso do direito para fins não democráticos. Bolsonaro, na medida do que pôde, cooptou as corporações jurídicas e fez uso do direito para fins autoritários.
Não é só o Ministério da Justiça. A gente está falando também da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República. Essas três instituições foram colonizadas, e todos os que estiveram à frente delas foram serviçais do Bolsonaro.
Como o Brasil escapou do destino de países como Hungria, Turquia e Rússia? Em outras palavras, por que o decreto ficou na gaveta?
O sistema político brasileiro é muito complexo. Eu falo isso porque o Bolsonaro tentou, por exemplo, passar uma PEC do voto impresso. E o voto impresso era só um artifício que ele buscava para criar confusão nas eleições. Bastaria um cidadão dizer, ‘eu votei Bolsonaro e apareceu o Lula’. Pronto, criava a confusão que poderia ser usada para justificar uma medida de força.
A [deputada] Bia Kicis [PL-DF], na Câmara, apresentou uma proposta de reversão da PEC da bengala, para tentar aposentar ministros do STF.
Houve várias tentativas da parte do Bolsonaro de fechar o regime. Mas é difícil isso andar, em parte porque o Congresso é complexo. A fragmentação do sistema político brasileiro impede soluções pelo Legislativo.
Além disso, no caso do Executivo, tem a dificuldade de legitimação internacional. Os Estados Unidos soltaram várias notas afirmando o respeito pelas eleições, parabenizando o Lula logo que ele foi eleito. Isso gera um receio das elites de embarcar nesse tipo de aventura.
E teve o [ministro] Alexandre de Moraes. Quando o PL entrou com aquela ação para contestar o resultado das urnas, ele deu uma resposta pronta e dura, o que teria desencorajado o partido a continuar esse tipo de conversa.
O sr. citou o Alexandre de Moraes como um obstáculo ao Bolsonaro. Alguns especialistas têm apontado possíveis exageros dele, tanto no Tribunal Superior Eleitoral quanto no STF. De que maneira ele difere de Moro na Lava Jato?
O caso do Alexandre de Moraes ainda está em andamento. A gente precisa ver como ele vai pousar esse avião: se vai ser uma queda brusca e fatal, como a Lava Jato, ou se ele vai ter habilidade de fazer um pouso tranquilo na pista.
Mas já dá para dizer, em primeiro lugar, que a gente tem de internalizar no Brasil a ideia de que o sistema de Justiça não é feito para defender a democracia ou para causar grandes transformações no sistema político.
Um erro da Lava Jato foi achar que, pelo processo judicial, conseguiria transformar a estrutura política no país – que tinha problemas, evidentemente, e eu nunca em meus estudos neguei a existência de esquemas de corrupção. É oneroso para o sistema de Justiça levar adiante esse tipo de tarefa muito ambiciosa, porque logo surgem questionamentos e porque os instrumentos são limitados.
Dito isso, Alexandre de Moraes tem à mão instrumentos melhores do que os da Lava Jato, porque ele lida não só com direito penal, mas também com direito administrativo-eleitoral. Por exemplo, muitas das medidas dele durante o processo eleitoral estão salvaguardadas por leis eleitorais. Ele não está simplesmente usando a lei penal pura.
Além disso, ele soube fazer um uso um pouco mais inteligente e menos espetaculoso dos instrumentos. A Lava Jato era baseada no espetáculo. O Alexandre de Moraes decidia e colocava nos autos; não dava entrevista, não fazia PowerPoint. Recentemente, ele começou a dar algumas declarações, e é onde eu acho que às vezes ele escorrega, como quando ele disse que essas pessoas são incivilizadas, que não dá para conversar.
Terceiro ponto: como ele é parte de um colegiado, ele consegue construir legitimidade de uma maneira diferente da que o Moro construía. O Moro teve muitas decisões validadas por instâncias superiores, mas demorava um tempo maior e gerava tensão em torno das decisões.
E o que faz muita diferença é o fato de o Alexandre de Moraes estar um pouco sozinho nisso, o que não é bom, mas também não é ruim.
Na Lava Jato, Ministério Público e juiz estavam consorciados. No caso de Moraes, ele é criticado por promotores, e isso serve como espécie de sistema de freios e contrapesos. Assim como a própria mídia, que tem apontado muito mais problemas agora do que fez em relação ao Moro.
RAIO-X | FÁBIO DE SÁ E SILVA, 42
Formado em direito na USP, com mestrado em direito na UnB (Universidade de Brasília) e doutorado direito, política e sociedade na Universidade Northeastern (EUA), é professor assistente de estudos internacionais e professor Wick Cary de estudos brasileiros Universidade de Oklahoma (EUA).
Publicou na revista “Law & Society Review” o artigo “Relational legal consciousness and anticorruption: Lava Jato, social media interactions, and the co-production of law’s detraction in Brazil (2017–2019)” (Consciência jurídica relacional: Lava Jato, interações de redes sociais e a coprodução da detração do direito no Brasil).