Governo de MG avaliza exploração na Serra do Curral após negativa da AGU
Foto: Cristian Mahashiah/Flickr
Mineradoras Gute Sicht e Fleurs Global são investigadas pela PF e atuam sem licenciamento ambiental
Por Alice Maciel
Agência Pública – Enquanto as atenções se voltavam para a tentativa da Taquaril Mineração de explorar a Serra do Curral, o local era alvo de outras duas mineradoras que contaram com a ajuda do governo estadual e da Agência Nacional de Mineração (ANM) para atuar no cartão postal e patrimônio histórico da capital mineira.
A Agência Pública teve acesso a documentos que mostram que a Advocacia-Geral da União (AGU) deu parecer contrário à concessão de lavra para a Gute Sicht, mas mudou de posicionamento após a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad) garantir a legalidade da operação. A empresa opera sem licenciamento ambiental.
Na última quinta-feira (24), a Polícia Federal (PF), que investiga as permissões concedidas pelo governo de Minas Gerais e pela Agência Nacional de Mineração (ANM) às empresas Gute Sicht e Fleurs Global, indiciou 13 pessoas e cinco empresas.
Entre elas estão o diretor da ANM em Brasília, Guilherme Santana Lopes Gomes, e as mineradoras Gute Sicht e Fleurs Global. O inquérito foi instaurado em 2020, depois de suspeitas levantadas pela Polícia Militar de que as empresas estariam simulando atividades de terraplanagem, mas praticavam mineração ilegal na região.
Com um sócio em comum, a Gute e a Fleurs conseguiram autorização para explorar a Serra do Curral por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com a Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram), órgão de fiscalização e regularização ambiental subordinado à Semad.
O documento foi assinado em 5 de maio de 2021 pelo então superintendente Breno Esteves Lasmar, que é próximo do deputado estadual Noraldino Júnior (PSC). Presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o parlamentar é apontado como lobista da Gute e da Fleurs em denúncia enviada ao Ministério Público por ONGs ambientalistas e parlamentares de oposição.
De acordo com a representação, Noraldino teria atuado junto a Lasmar para favorecer as mineradoras. O deputado afirmou por meio de sua assessoria de imprensa “que não tem conhecimento dessa suposta denúncia caluniosa”.
Um parecer da Advocacia-Geral da União de 5 de outubro de 2021 alertou sobre a ilegalidade na concessão de lavra por parte da ANM à Gute. O advogado Víctor Vale Cantarino, que assina o documento, destacou que “não existe ajuste ou exceção no arcabouço jurídico vigente e válido que justifique o exercício de atividade de mineração sem o respectivo licenciamento ambiental”. “É preciso esclarecer, assim, que o termo de ajustamento de conduta não é instrumento substitutivo à Licença Ambiental”, acrescenta.
Ele explica no parecer que “o licenciamento apresenta natureza completamente distinta de um TAC Ambiental”. “Enquanto o licenciamento ambiental é um procedimento administrativo extenso e dotado de diversas fases e atos, fundado nos relevantes Princípios da Prevenção e Precaução, o termo de ajustamento de conduta pressupõe uma infração anterior, uma ilicitude reconhecida e objeto de solução extrajudicial, sem a presença de todos os estudos necessários e característicos de um licenciamento ambiental”, observa.
O Advogado-Geral da União destaca ainda que a área é uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, o que, nas palavras dele, “requer atenção ainda maior no cumprimento da legislação ambiental”. “Ao final, portanto, é possível concluir que a elaboração do licenciamento ambiental do empreendimento é medida indispensável para a regular tramitação do requerimento de concessão de lavra”, ressaltou.
Após o parecer de Cantarino, a Gute juntou ao processo um documento da Semad em que a Secretaria dá garantia de que o empreendimento encontra-se apto para o exercício de lavra a céu aberto: “Diante dos fatos, declaro que o empreendimento Mineração e Dragagem Boa Vista Ltda/Mina Boa Vista está apto a exercer suas atividades de estrada para transporte de minério/estéril externa aos limites de empreendimentos minerários; lavra a céu aberto – minério de ferro; pilhas de rejeito/estéril -Minério de ferro”, informa a declaração de 20 de outubro de 2021. Mina Boa Vista é o nome fantasia da Gute Sicht.
Diante da manifestação da Semad, a AGU entendeu que o órgão ambiental mineiro assumiu a responsabilidade sobre a regularidade da operação. “Com efeito, por mais que o licenciamento seja obrigatório para a concessão de lavra e o TAC não seja substitutivo à licença, observa-se que o órgão ambiental competente afiançou, sob sua exclusiva responsabilidade, que o empreendimento encontra-se apto para o exercício de lavra a céu aberto, tendo o documento presunção de veracidade e dotado de fé pública”, diz trecho destacado na nota técnica assinada pelo advogado da União Mauro Henrique Moreira Sousa em 26 de outubro de 2021.
Oito dias depois da nota da AGU, a ANM autorizou a concessão de lavra à Gute. A agilidade com que a empresa conseguiu a permissão – 503 dias entre o requerimento de lavra e a concessão de lavra e 178 dias entre o TAC e autorização –, chamou a atenção da Polícia Federal. Os peritos fizeram um levantamento de outros dez processos minerários semelhantes que passaram pela agência e constataram que o tempo de tramitação foi de cinco a dez vezes maior do que o da Gute.
A Semad justificou à Pública que o empreendimento possuía “processo administrativo de licenciamento ambiental formalizado junto ao órgão ambiental e que a continuidade do exercício de suas atividades minerárias estava amparada pelo Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, celebrado em 07/05/2021”. A nota pode ser lida na íntegra aqui.
Já as mineradoras afirmaram que suas atividades são regulares. A Fleurs destacou que a operação foi “devidamente licenciada perante todos órgãos ambientais competentes, inclusive junto à Semad/MG. A Gute também ressaltou que possui “autorização dos órgãos responsáveis para seu pleno funcionamento” e que “a documentação ambiental está vigente e segue todas as normas necessárias com rigor”. A ANM não retornou aos contatos da reportagem.
Empresas foram autorizadas a explorar Serra do Curral sob suspeita de fraudes
Além de não ter a licença ambiental, quando a ANM autorizou a Gute a explorar a Serra do Curral, a operação da empresa no local já tinha sido suspensa por decisão da Justiça Federal. A decisão, de 16 de julho de 2020, atendeu a um pedido da Polícia Federal que investiga a operação na área há quase três anos. O fato também foi destacado em parecer da Advocacia-Geral da União.
O inquérito da PF foi instaurado após uma fiscalização da Polícia Militar de Meio Ambiente de Minas Gerais ter flagrado “motoristas de caminhão na região de Belo Horizonte divisa com Sabará fazendo o carregamento de minério de ferro e terra, de forma aparentemente ilegal”. Posterioremente, a Polícia Federal constatou que as empresas simulavam atividades de terraplanagem, mas praticavam a mineração ilegal, sem autorização da Semad e da ANM.
De acordo com representação da PF, “o modus operandi dos investigados consiste na prática da atividade de terraplanagem de terrenos, regulares ou invadidos, sem autorização ou em discordância com o autorizado pela Prefeitura local, para dissimular a extração irregular de minério (pois o solo da região é rico em minério), comercializando o minério assim retirado para siderúrgicas ou empresas de beneficiamento de minério (conhecidas como “peneiras”), burlando, deste modo, a fiscalização dos órgãos ambientais competentes”.
À época que os peritos foram ao local, a Gute apresentou uma Guia de Utilização emitida pelo então Gerente Regional Substituto da ANM, Guilherme Gomes. O documento é uma autorização para extração mineral, em caráter excepcional, antes da outorga de concessão de lavra e foi expedido com base em uma certidão de dispensa de licenciamento em nome de outra empresa, para terraplanagem, garagem de máquinas e caminhões, escritório e oficina de máquinas e caminhões.
“Ora, pela leitura dos autos é possível concluir, de antemão, que a empresa Mineração e Dragagem Boa Vista Ltda. não apresenta e nunca apresentou licença ambiental para a extração de minério de ferro, tendo apresentado para lastrear a guia de utilização, por erro ou má-fé, dispensa de licenciamento ambiental em nome de outra empresa e para exercício de atividade diversa (terraplanagem e não extração mineral!)”, ressaltou o AGU Cantarino em seu parecer.
Foi constatado pelos investigadores que o servidor efetivo do cargo, Jânio Alves Leite, estava em serviço quando Gomes, seu substituto, assinou o documento. Ao saber do caso, Alves anulou a guia. Guilherme Gomes, que atualmente é diretor da ANM em Brasília, foi indiciado por prevaricação. O crime é definido no Código Penal como “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
De acordo com a Polícia Federal, os indiciados podem responder por crimes como extração mineral ilegal, lavagem de dinheiro e por formação de associação criminosa.