Câmara encerra projeto “30 anos sem Drummond” ignorando conteúdo político de sua obra

Carlos Cruz*

O menino antigo, assim como os poemas que falam com nostalgia do poeta que viveu até a adolescência em Itabira, e que não sabia ser a sua história mais bonita que a de Robinson Crusoé, ficaram mais conhecidos dos vereadores itabiranos com o projeto “30 anos sem Drummond”, uma iniciativa do vereador e sindicalista Paulo Soares (PRB). O projeto foi instituído para lembrar o falecimento de Carlos Drummond de Andrade no dia 17 de agosto de 1987, aos 84 anos, no Rio, onde ele passou a maior parte de sua vida.

O vereador Paulo Soares com o coral da Fundação Carlos Drummond de Andrade (Fotos: Divulgação)

Mas do Drummond “gauche” de A Rosa do Povo e dos poemas O Maior Trem do Mundo e Lira Itabirana, ambos publicados originalmente no jornal O Cometa, em 1984, na véspera da realização do I Encontro Nacional de Cidades Mineradoras, pouco se falou.

Como também não foi lembrado pela Casa do Povo, encarregada de debater politicamente as mazelas e  os anseios da sociedade itabirana, o cronista que denunciou os tristes horizontes escavados pela mineração. Nada se falou do cidadão que lutou pela implantação do Imposto Único sobre Minerais na década de 1960, quando só restava a Itabira as migalhas da extração mineral.

Nada disso foi dito pelos vereadores. Ficou esquecido o cidadão que lutou, juntamente com outros itabiranos, pela instituição do Fundo Nacional de Exaustão Mineral, uma espécie de indenização pelo fim inexorável do minério de ferro, e que só se tornou realidade com a Constituição de 1988, com a Compensação Financeira pela Extração Mineral (Cfem), os royalties do minério.

Drummond com a turma de O Cometa, em 14 de fevereiro de 1981: na visita, muito se falou sobre o fim inexorável do minério e do pouco que fica para Itabira (Foto: Humberto Martins)

O Drummond que ao longe viu o maior trem do mundo levar a coisa a mínima, o seu coração itabirano, esse foi esquecido. Desse itabirano engajado e que não fugia da luta, pouco ou nada se falou nas celebrações de sua vida e obra pelos edis itabiranos. Afinal, não é cômodo falar das pedras no caminho ainda existentes. E que nunca deixaram de existir em sua cidade natal.

Sobre o que virou a terceira Itabira, após o início da extração em escala do minério de ferro, nada se falou por desconhecimento, ignorância ou desejo deliberado de nada dizer a respeito, mesmo estando a mineração vivendo o seu crepúsculo com o fim de suas jazidas que se aproxima. Sobre isso e o que disse Drummond a respeito, nem um pio se deu pelos não tão nobres e dignos edis itabiranos.

Focou-se no potencial que a sua obra, e as referências que o poeta fez com carinho à sua terra natal, como se essas fossem a panaceia possível para salvar o município do fim da mineração, como se Drummond fosse uma alternativa econômica à mineração.

Mesmo nesse intuito, nenhum projeto foi apresentado pelos vereadores, ou pela administração municipal à Câmara, para revitalizar os Caminhos Drummondianos ou para melhor equipar o Memorial Drummond e dar uma destinação digna à Casa do Pontal. Esqueceram-se de lembrar.

Vila de Utopia

A crônica Vila de Utopia, em que o escritor critica a letargia do itabirano que vê a vida passar devagar, e que nada faz para mudar a realidade diante da riqueza inerte do Cauê, foi sequer citada. Devia ter sido lida na íntegra, mesmo que tomasse um bom tempo de uma sessão legislativa, quando se perde tanto tempo com indicações inócuas e requerimentos que dão em nada.

Vereadores em momento de tietagem com a Cia Itabirana de Teatro

Se a lessem, os edis itabiranos pelo menos teriam a oportunidade de entender o porquê de Drummond, em uma carta dirigida ao Cometa, também em 1984, dizer que não mais acreditava nas palavras dos homens públicos de Itabira. Se o poeta vivesse hoje, com certeza o seu ceticismo seria ainda maior.

Drummond, o gauche

O poeta itabirano foi execrado por muitos anos em sua terra natal por ter supostamente desprezado a cidade com a fotografia na parede. Mas na verdade, ele foi combatido e criticado nos anos de chumbo, de repressão e terror que foi a ditadura militar, inclusive, por muitos professores de português, de literatura e moral e cívica, justamente por ter sido um poeta engajado na luta do povo. Um “gauche” na vida e em sua obra literária.

A própria fotografia na parede foi uma metáfora de quem via a cidade se perder no fascínio dos mais de um bilhão de toneladas de hematita incrustada no venerável pico do Cauê. O desdém cultivado e incentivado durante a ditadura, e que ainda persiste em muitos setores da sociedade itabirana, foi pelo conteúdo crítico de suas crônicas e poemas.

Drummond versou também sobre as mazelas do país e o sofrimento do povo. E isso incomodava o regime militar. Foi por ele ter sido de esquerda, ex-militante do Partido Comunista (por pouco tempo, vá lá), que o poeta foi criticado e colocado no índex por parte da imprensa áulica do regime militar (a grande maioria) e por professores e políticos que também apoiaram a ditadura.

O poeta engajado, que não se omitia diante dos desmandos da mineração e dos governos, que apoiou os garimpeiros de Itabira na luta para que continuassem extraindo as migalhas deixadas pela Vale na Grota do Minervino, no início da década de 1980 (Chove ouro em Itabira), esse foi inteiramente esquecido pelos vereadores – e até aqui, por quase toda Itabira.

Cauê em 1936 (acervo: Cristina Silveira)

Paralisia

Pelo visto, pouco interessa à cidade, e aos edis, debater o que será a quarta Itabira, que virá após o fim da mineração, que não demora a chegar sem que se tenha convertido a riqueza que se esvai em prosperidade duradoura, na tal economia diversificada, necessidade já apontada pelo nosso vate antes mesmo da mineração em larga escala ter início com a Vale, em 1942.

Drummond considerava tanta riqueza em potência como o grande mal de Itabira. Como ainda é. “Que notícias me dás, Itabira, da Associação Brasileira de Mineração, último esforço da nossa gente para manter o caráter nacional dos nossos depósitos minerais, hoje entregues ao estrangeiro tão arrebentado quanto nós para explorá-los? “, questionou o poeta em 1933, na já citada crônica Vila de Utopia.

E mais: “A cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica. Mas, de sua paralisia provêm a sua força e a sua permanência. Os membros de ferro resistem à decomposição. Parece que um poder superior tocou esses membros, encantando-os. Tudo aqui é inerte, indestrutível e silencioso. A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro.”

Se a vida passasse depressa, talvez Itabira não seria apenas uma fotografia na parede, pois “à sombra do Cauê, uma usina imensa reuniria 10 mil operários congregados em cinquenta sindicatos, e alguma coisa como Detroit, Chicago, substituiria o ingênuo traçado das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos.”

Irônico, o poeta indaga: “ Mas para que tanta pressa? Tudo virá a seu tempo, e se não for agora, como não foi em 1898, quando o padre Júlio Engrácia dizia ironicamente que ‘depois que pelos diversos estudos ficou a esperança que passará na cidade uma via férrea, tem havido animação em construir; ao menos houve essa vantagem’ – algum dia há de ser, e tudo estará bem. Na consumação dos séculos se consumarão também os nossos desejos, e a alma alcançará a bem aventurança eterna, que é o sono no regaço de Deus. Até lá, vivamos com calma.”

Restou ao poeta, como por certo restará às gerações futuras por negligência e omissão histórica dos homens públicos do município, lamentar as perdas incomparáveis. “Tanta riqueza em potência vem sendo, talvez, um grande mal para a vila de Utopia. Itabira, onde estão tuas trinta fábricas de ferro do tempo do barão de Eschwege, com seus cadinhos dotados de trompas e martelos hidráulicos, os seus fornos e as suas oficinas de armeiro, que antecederam e suplantaram em eficiência a real fábrica do Morro do Pilar?”

Todo esse conteúdo que poderia ter servido de um rico subsídio para o debate legislativo em torno do legado político de Drummond passou batido nas exaltações ingênuas e despolitizada dos vereadores. O seu legado literário e de militante de esquerda, sem partido, é verdade, mas fazendo uso de sua arma que é a letra convertida em poemas e crônicas em defesa dos interesses de sua terra natal, esse continua desconhecido pelos vereadores e por boa parte dos itabiranos.

Exaltam o menino antigo, esse é inofensivo. E esquecem o Drummond politizado, engajado:

“Todos cantam sua terra, mas eu não quis cantar a minha. Preferi dizer palavras que não são de louvor mas que traem a silenciosa estima do indivíduo, no fundo, eternamente municipal e infenso à grande comunhão urbana. Ainda assim fui itabirano, gente que quase não fala bem de sua terra, embora proíba expressamente aos outros falarem mal dela. Maneira indireta e disfarçada de querer bem, legítima como todas as maneiras. E afinal, eu nunca poderia dizer ao certo se culpo ou se agradeço a Itabira pela tristeza que destilou em meu ser, tristeza minha, tristeza que não copiei, não furtei… que põe na rigidez da minha linha de Andrade o desvio flexível e amável do traço materno”, assim ele finaliza a crônica Vila de Utopia.

Ideia espúria

Poço da Água Santa não tem nada de santa

Não demora, e não será de se assustar, surgirá algum edil com projeto de colocar uma santa no poço da Água Santa, para incrementar o “turismo literário e religioso.”

Se tal heresia ocorrer, será mais um atentado à memória de Drummond e à história da Cidadezinha Qualquer. Se a água era santa, não era por suposto milagre da virgem, mas por suas qualidade termais, que ao fazer a assepsia, curava as feridas dos garimpeiros faiscadores de ouro de aluvião que ali banhavam.

Pobre Itabira, que pouco conhece de sua história e do verdadeiro legado de seu filho mais ilustre. Quem sabe na Semana Literária Drummondiana, quando se celebra o seu nascimento em 31 de outubro de 1902, o poeta político e engajado na defesa de sua terra natal se torne mais conhecido pelos itabiranos. E o que o senso crítico de sua obra possa enfim ser exaltado – e compreendido para transformar a triste realidade de letargia e possa sacudir o itabirano que vê a vida passar devagar. E que pouco, ou quase nada, faz para mudar esse triste quadro de decadência e fim inexorável.

 

 

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3 Comentários

  1. Bela matéria! Parece que um pêndulo gigante passou sobre a cidade e hipnotizou os Itabiranos, ou foi a poeira da serra que amorteceu o cérebro, ou foi o minério de ferro como um ferida aberta que fez os pensamentos gordos e abafados sem forças para transcender a grandeza do lugar.

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