A incorporação de todas as almas

Foto: Reprodução
TV Globo

Veladimir Romano*

Se tem alguém nesse mundo que incorpora várias almas numa só é Jô Soares na forma materializada do Ser. Intimamente associado ao ato criativo, só não foi o que mais quis ser neste planeta pelo pouco tempo concedido em qual comunicação, arte, talento hiperconsciente, participação social, ternura, sentimento humano, satisfação e humor absolutista impondo rara inteligência onde a mensagem é sempre esclarecida, frontal, até corrosiva pelas denúncias contra a desumanidade dos sistemas.

Importância, intenção, exame e diferença, ultrapassam fronteiras como auxílio curativo ao mundo por vezes insensível, esquizoide, vivendo suas angústias diárias sem saber como escapar desse lado negativo.

A presença de Jô Soares no grande palco humano [em Portugal encheu a alma do povo, representa um dos momentos mais altos do humorismo], é o da personalidade integral abrindo portas inclusivamente a outros humoristas brasileiros.

E se entrega com quanta segurança ontológica contributos envolventes, processos contínuos da sanidade e validez aos portugueses em instantes trágicos da vivência menos capaz no desencontro das mudanças políticas ocorridas no país carregadas de frustração e desânimo.

Era bom quando chegava o “Planeta dos Homens”, desaparecia a sombra de Kafka, entrava a magia de Jô Soares & Companhia. Uma ampla e saudosa realidade, profunda significação preservada contudo recordando visita ao parque onde a “Festa do Avante” [atividade anual política-cultural do órgão informativo do PCP], conversa amena da observação:

«Tenho a sensação quando atravessei aqueles portões, deixou claro o quanto suspenso fico pelo festival oferecer sintomas de reação terapêutica positiva…». Ser humorista e praticar esse interior de outro nível intelectual, não é coisa pouca nem fácil.

A razão existencial tão diminuta de humoristas pelo planeta ou como diria no seu código verbal outro grande humorista brasileiro, Badaró (1933-2008): «Somos pedacinhos de cortiça flutuando pelo oceano».

Na interpretação humorista, em particular com Jô Soares, encontramos ou vamos descobrindo metamorfoses dotando sua obra de arte no campo sociocultural, contextos psicossociais por meio de personagens contundentes assaz vinculados a qualquer tempo, manifestando a vida tal qual ela é.

Interpretações específicas do estado  de uma sociedade onde a coerência artística, texto e personagem determinam evolução e memória.

A libertação do riso também consegue conduzir a uma outra independência contra sentidos subversivos e Jô Soares, poeta em observadora contribuição, deu almas às quais ele próprio soube encarnar.

Moldura Vesperal

Com o reacender dos Jacarandás

o Sol ilumina em laranja suave

e logo a ausência se fez pensamento,

presença, lembrança… memória.

Foi reencontro quase imóvel

descobrindo em cada rosto interpretação,

entrega, mobilidade espontânea:

várias almas numa só.

Riqueza oculta aos poucos, levemente

criadora de consciências a belo canto.

Hoje, escuto cigarras, sobras do vento

mas, ao longe, se anuncia chuva precoce,

gente imóvel assistindo à tempestade

que se aproxima ou provocação dos loucos do mundo sofrido,

sem humoristas quando a Censura cortou a goela do Ser.

Quase deserto ficou o Mundo,

forças faltaram até descobrir

na “Moldura Vesperal”, prometido julgamento

metido no próprio sonho, âncora e bordão

do que julgou tal impedância a feição organizada,

límpido, transparente… fluídos duma mente organizada,

dedicada, alegre, disposta a preceitos obstinados

à incorporação das almas, viventes do pedregoso trilho para lá do Sertão…

V.R.

Lisboa: 6-8-2022

*Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-cabo-verdiano.

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