A história da humanidade em relação à sua alimentação: um olhar sobre sociedades capitalistas

Por Beatriz Leite Pessoa*

A história do homem evolui de forma conjunta à história da sua alimentação. O modo como sua relação com a natureza se constrói, assim como a capacidade e desejo de modificá-la, está intimamente relacionado ao processo de domínio e domesticação de aspectos naturais.

Portanto, nota-se que sua alimentação passou por diversas transformações ao decorrer da história da humanidade, apresentando períodos e revoluções chave, que modificaram radicalmente não apenas a forma como o ser humano se alimentava, mas o modo como obtinha esse alimento e como coexistia com o ambiente que ocupava.

Vê-se que no curso da “evolução” da humanidade, passamos desde um estado de relação harmônica de simbiose com o natural, até uma subversão massiva de valores, onde a ideia de independência, no que diz respeito à natureza, é celebrada, ao invés de temida.

Há cerca de 300 mil anos, temos um marco na forma como o ser humano se relaciona com a comida. O uso cotidiano do fogo traz consigo a inovação que é o ato de cozinhar o alimento que, por sua vez, se torna mais do que uma forma de sustância, mas se transforma no que hoje ainda é conhecido como uma das maiores fontes de prazeres da vida, aproveitar uma refeição.

Já há cerca de 70 mil anos, temos a chamada Revolução Cognitiva. Reconhecida como uma forma de inovação do comportamento social, essa revolução marcou o início do desenvolvimento das culturas, que são, por sua vez, permeadas de significância no que diz respeito aos hábitos alimentares.

Observa-se que culturas, quando se trata da alimentação, são marcadas por rituais de banquete e caça, hierarquização da população com base no tipo de alimento e festividades sempre com abundância e fartura. O início da elaboração de culturas se deu, portanto, em um mundo pré-agrícola, em pequenos grupos populacionais, mas que já iniciavam seus rituais em relação à alimentação.

Ainda no mundo pré-agrícola, é importante ressaltar a dinâmica dos pequenos grupos que permeavam a terra. De natureza nômade, o homem se deslocava constantemente pelo espaço, respeitando os ciclos naturais dos ecossistemas e se adaptando a eles.

Dessa forma, nota-se o vasto conhecimento que o homem tinha sobre o funcionamento do meio que habitava, e estava profundamente em contato com todo o processo de sua alimentação, que era baseada na caça, mas, principalmente, nas atividades de coleta.

Finalmente, acontece a revolução chave, que modifica para sempre a dinâmica do homem, não apenas com relação à sua alimentação, mas à forma que se relaciona com o meio ambiente. Essa é a chamada Revolução Agrícola, que ocorreu por volta de 12 mil anos atrás.

Marcada pela domesticação de plantas e animais, essa revolução determina o fim do estilo de vida nômade, dando lugar ao sedentarismo. Apesar do que se possa pensar, o sedentarismo não favoreceu a variabilidade dos tipos de alimentos, nem proporcionou uma qualidade de vida melhor ao ser humano no que diz respeito à sua nutrição e cardápio.

Pelo contrário, agora o homem é escravo do carboidrato (principalmente do trigo), e da carne, carecendo cada vez mais de nutrientes que antes eram naturalmente fornecidos pelo estilo de vida do nomadismo (através da coleta).

A Revolução Agrícola, na verdade, deu origem a explosões populacionais
que, por sua vez, conceberam ideias como as de propriedade privada, exploração do trabalho alheio e, consequentemente, o surgimento de elites favorecidas.

Como sabemos, tais elites virão a controlar, no mundo das sociedades capitalistas atual, os meios de produção, apresentando, dentre outros aspectos, domínio sobre a produção e comercialização de
alimentos.

Antes, o ser humano mantinha uma relação de coexistência harmônica com o meio natural, se adaptando às condições naturais e, consequentemente, conhecendo profundamente o espaço que habitava, além de como obter dele o necessário para sobrevivência e tendo profundo contato com as fontes de sua alimentação.

Agora, o homem modifica a natureza, fazendo-a atender às suas necessidades e, na maioria incontestável das vezes, acaba por prejudicá-la.
Num plano mais recente da história da humanidade, têm-se, há 500 anos, a Revolução Científica, que culmina com o modelo sociocultural, monetário e político que rege a dinâmica do cenário mundial atual: o capitalismo.

Na lógica capitalista, de industrialização e domínio sobre o meio natural, nota-se um grande distanciamento do ser humano do processo de obtenção de alimento, que agora é dominado por grandes corporações, que visam sempre a
obtenção de lucro em detrimento da saúde de seus consumidores e integridade do meio ambiente.

Com o advento desse modelo ideológico, nota-se o afastamento e estranhamento cada vez maior do homem com sua alimentação e com o espaço. A ideia de independência em relação ao meio natural ganha cada vez mais importância na agenda da sociedade, que propaga uma ideia de superação da natureza, onde o ser humano não faz parte dela, mas é seu possessor.

Nesse sentido, nota-se que ocorre um processo de “coisificação” do meio ambiente, que existe apenas para servir à propósitos específicos, suprindo a ganância de industriais e alimentando a cultura do consumo e geração exacerbada de lucro pela sociedade. Chegamos, então, à característica mais marcante da forma como o homem pertencente à sociedade capitalista se relaciona com a comida: é um relacionamento de dissociação.

Tomando o termo “dissociar” como um processo de desagregação, ou separação, nota-se que o homem capitalista, embora outrora coexistisse harmonicamente com o meio ao seu redor (possuindo profundo conhecimento sobre o mesmo), hoje tem, na sua relação com a obtenção de alimentos, um sentimento de quebra, ou seja, uma ruptura.

Sendo pouco conhecedor, nos dias atuais, da procedência dos alimentos que consome, assim como de sua composição, é preocupante a falta de contato e interação do ser humano com o meio natural e com as fontes nutritivas que o mantém vivo.

Observa-se, portanto, que essa relação entre homem/comida é intermediada por corporações e empresas que controlam os meios de produção e, sob um pretexto de facilitar e mediar o processo de obtenção de alimentos, que é vendido como complicado e desnecessário, tais empresas buscam por até mesmo omitir a origem dos alimentos e questões sobre a sua qualidade.

Assim, nota-se que, hoje em dia, tanto a alimentação, quanto os meios para se adquirir os alimentos, são processos incrivelmente estranhos ao homem moderno.

Como diz o ambientalista e líder indígena, Ailton Krenak, em seu livro A vida não é útil, “estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra” (Krenak, 2020, p.22), ou seja, o ser humano está incorporado na visão capitalista de tal modo que já não percebe que faz parte do meio natural e depende dele profundamente.

Vale ressaltar que, no caso do Brasil, nota-se que o processo de dissociação com o alimento se acentua com a chamada urbanização. De acordo com a história do Brasil, vê-se que o processo de deslocamento do campo para a cidade se intensifica na década de 1950, devido aos incentivos por parte do governo de Juscelino Kubitschek, de 1956 a 1961, que investiu de forma significativa na industrialização do país.

O campo, que se mostrava um ambiente cada vez mais mecanizado e concentrado nas mãos de uma elite reduzida, criou condições suficientes que favoreceram o movimento chamado de êxodo rural.

Portanto, já na década de 1970, o Brasil era um país majoritariamente urbano, ou seja, a maior parte da população se concentrava nas cidades, se afastando cada vez mais dos modos de produção de alimentos.

Atualmente, cerca de 80% da população brasileira vive em áreas urbanas que, por terem que abrigar um contingente populacional considerável, acabam passando por processos crescentes de verticalização e pela restrição de áreas verdes cultiváveis.

Assim, a população, que se vê muito restrita a um ambiente urbano, acaba por consumir produtos mediados por empresas e negócios mundiais, sem ter um real contato com as formas de produção como se tinha na vida no campo, quando o homem se via mais próximo à sua comida.

Essa proximidade, como veremos a seguir, atribui significados mais profundos ao ato de se alimentar, que não promove apenas a sustância, mas um alimentar-se de cultura, de sentimentos e imaginários.

É importante lembrar, contudo, que existem sociedades cuja cultura em relação ao meio ambiente e à alimentação se apresentam como exceção ao observado no modelo capitalista, como é o caso das diversas etnias indígenas no território brasileiro, como será abordado mais adiante, em um novo artigo.

*Beatriz Leite Pessoa é itabirana, estudante de Marketing na Universidade de São Paulo (USP)

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3 Comentários

  1. Parabéns Beatriz!
    O alimento hj, principalmente no Brasil é veneno puro, para alimentar o bolso do agronegócio, enquanto a agricultura familiar é desqualificada.

  2. Parabéns Beatriz!!!
    Você trouxe à luz um dos maiores problemas atuais, na minha compreensão: a “dissociação” homem e Natureza. Daí decorrem os diversos equívocos que enfrentamos hoje na organização da nossa sociedade, em seus múltiplos aspectos.

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