Claro Enigma do homem esquisito

Otto Lara Resende (1922-1992). Reproduçao: O Globo

 Vovó viu a uva e o poeta do sentimento do mundo viu o futuro, como conta a croniqueta de Otto Lara, que em 1949 tinha 27 anos e por isso mesmo ficou besta com a clareza do visionário Carlos Drummond de Andrade, o poeta de 47 anos. (MCS)

 Carlos Drummond de Andrade num instante de pessimismo

Otto Lara Resende

Da primeira vez que o procurei, o poeta lá não estava, como esperava encontrá-lo oculto atrás dos arquivos de aço. Perguntei por ele a um rapaz que se encontrava na sala, e a informação veio maior do que eu esperava:

– É um homem esquisito. Não é ele, mesmo que o senhor está procurando, um magro? Ele nem sempre está aqui, ou então sou eu que venho pouco… Vem, senta aí na mesa dele, faz o serviço calado, não dá uma palavra com ninguém. Não conversa, a não ser no telefone, e lá de vez em quando dá um cumprimento que quase nem se ouve. Homem esquisito! Mas é danado de organizado e trabalhador!

Voltei uma hora depois, e lá estava, atrás de seus arquivos, “o homem esquisito”, o poeta Carlos Drummond de Andrade, que por ter conseguido dar expressão a essa “esquisitice” é hoje uma das glórias e das poucas e das mais autenticas, deste país. Cinco minutos depois estávamos engajados numa conversa com furos de profecia, nascida assim de uma pergunta banal de como vai a vida.

– Dentro de alguns anos – diz-me ele – a vida estará completamente modificada. Os progressos científicos acabarão por vencer as diferenças pessoais, o sofrimento individual que hoje nos assalta e embaraça. Cada descoberta da ciência, cada passo no progresso da física é um golpe terrível contra a nossa maneira de ser e a nossa própria concepção do homem. Ainda agora, uma Academia de Ciência se desentendeu com outra Academia, a propósito de genética. Os da primeira parecem convencidos de que poderão determinar o tipo do homem do futuro, sem que esteja preso às leis da hereditariedade. É uma tendencia para a uniformização, com a produção de homens em massa, como numa chocadeira. O pior é que, com a descoberta da desintegração do átomo, tudo parece possível. Caiu por terra completamente a noção de química e de física que aprendemos no ginásio. Já não há diferentes corpos, de diferente composição, mas uma única matéria, que se organiza segundo a disposição dos elementos atômicos, de um ou de outro jeito, resultando daí ouro ou madeira. A desintegração torna possível transformar tudo em tudo. É a era da alquimia, mas uma alquimia sem encantos, porque já não haverá limites e cairá toda e qualquer noção de valor.

O poeta está loquaz, bem diferente do retrato que dele me dera, pouco antes, meu informante anônimo. A conversa me assustava. Senti-me condenado a uma condenação fatal que não tarda. E o poeta continuou, implacável.

– Teremos que viver num mundo que contraria o que somos. Já não haverá discriminações individuais. Tendem a desaparecer as características pessoais. O sofrimento, a angústia, a miséria de cada um de nós, talvez não passem de uma questão puramente fisiológica e, assim sendo, não existirão no homem de amanhã. Realmente é difícil, para homens como nós, imaginar esse mundo futuro, e tão próximo. Assimilamos uma concepção espiritualista da vida e não conseguimos nos libertar do sentido metafisico, que se afirma ainda quando nos empenhamos na sua negação. Esse sentido, porém, não alimentará o homem da nova era que será um tipo saudável, frio sob medida livre do imprevisto e do insolúvel.

O telefone toca. O poeta se interrompe um instante e, enquanto fala com o outro lado do fio, retira da gaveta alguns livros franceses recebidos há pouco. São vários volumes preciosos, todos de ensaio sobre a poesia, além de uma edição bilingue de Heine. Pouco depois, retorna a conversa.

– O artista paga um preço muito alto, pela sua arte, que é fruto quase sempre, de um sofrimento, essa angustia, para transmitir emoções?

– O artista distribui um artigo que não tem preço, que não se paga em ouro, nem ao preço de capa. Deveria, pela lógica, gozar de uma situação correspondente, mas nem isso é possível. O poeta sofre as misérias do mundo de todo dia, como qualquer cidadão e, pior, mais do que um cidadão qualquer. Valerá a pena tudo isso?

A pergunta me deixa confuso, meio triste, meio patético. Carlos Drummond de Andrade parece convencido do futuro que nos separa:

– Talvez se consiga um bom resultado, com o novo tipo de vida. No mundo futuro, criado pelo progresso espantoso da ciência, não caberá seu jeito próprio de sentir a vida, seu modo de ser, sua hesitação, suas emoções particulares. Daqui a uns vinte anos, se não morrermos triturados pela bomba atômica, ou em função de qualquer catástrofe, morreremos de pânico, de puro pavor. Pode estar certo disso.

Vem-me à cabeça uma frase que me perseguira, pela manhã gratuitamente, sem qualquer razão: “herói ridículo de uma pátria decrepita”. Conto-a ao poeta, e ele sorri. Depois falamos de livros, mas eu estou me sentido fatalizado à destruição e tenho sensação de que já estou sobrando neste mundo. Carlos me oferece o “Baudelaire”, de Jean-Paul Sartre, e a dedicatória está a propósito: “meu companheiro de pessimismo, com um abraço fúnebre”.

Depois, deixamos o ministério da Educação e vamos tomar um café. A conversa se multiplica e toma outra configuração. Enquanto a era atômica não chega, bebemos a nossa tranquila média burguesa, que tem um gosto de segurança e eternidade.

[Diário de Pernambuco, 1/1/1949. Hemeroteca da BN-Rio]

 

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