Yes, mister Brown
Por Rubem Braga
Aconteceu que, ante-ontem, dia santo, de noite eu não tinha o que fazer, não me achava disposto a estudar nem dormir, estava sem onde ir. Para não ficar bestando sozinho na rua, entrei num cinema.
Passava uma fita chamada “Yes Mister, Brown”. Entrei no meio e mal aguentei até o fim. Não quis ver o começo, (Fico assustado, sentindo que a minha capacidade de aturar cretinices está se gastando. Mesmo quando obrigado por dever profissional já não suporto mais de meia coluna de discursos parlamentares por dia. Há tempos eu lia tudo, na integra, e me divertia extraordinariamente com isso. Sempre fui um doce rapaz, mas acho que estou ficando azedo. Aliás, noto no povo a mesma disposição de espírito).
Na fita havia Mister Brown e várias pessoas abaixo de Mister Brown. Qualquer tolice que Mister Brown dissesse (ele não disse outra coisa o tempo todo) e a resposta já se sabe:
– Yes, Mister Brown.
Mister Brown, meio barrigudo, chefe da firma, quer a mulher do empregado. O empregado sorri amarelo e responde:
– Yes, Mister Brown.
Então Mister Brown sorri azul e dá um lugar de????- ao empregado. Todas as pessoas que aparecem na fita dizem, invariavelmente:
– Yes, Mister Brown.
O tema de todas as canções, e estribilho de todas as atitudes:
– Yes, Mister Brown.
No fim, a apoteose dos “yes”, Mister Brown desce uma escada levando pelo braço uma empregada que, apesar da cara de mamão e da barriga proeminente Mister Brown, teve coragem de dizer:
– Yes, Mister Brown.
Mister Brown desce a escada com a mulher e dezenas de “boys” fardados em fileira de honra, sorrindo:
– Yes, Mister Brown.
A fita, tanto quanto eu entendo de fitas, não presta. Aconselho o público a não gastar dinheiro com ela. Mas aconselho Mister Brown a ir.
Porque Mister Brown anda por aí. Para ele a vida, a honra, a felicidade, tudo é uma questão de dinheiro – e ele é o chefe da firma. Para ele engordar, os homens suam nos engenhos, se esgotam nas fábricas, se enfastiam nos escritórios.
Não importa que as mulheres no trabalho escravo se tornem feias e doentes, que as crianças morram na lama dos mocambos, que milhares e milhões de criaturas nasçam, vivam e morram na miséria. Ele é Mister Brown. Compra belas mulheres e homens inteligentes. Compra tudo. E para seu sossego é preciso que todos digam:
– Yes, Mister Brown.
Ai de quem não disser! Ai do que deixar escapar um gemido de dor, um grito de revolta; Mister Brown é um bom homem, mas essas coisas ele não perdoa. Tudo tem seus limites, ora essa. Nesse ponto ele não transige absolutamente; é preciso respeito, é preciso manter a ordem. A ordem é sagrada! A ordem é sagrada e é de Mister Brown; foi feita por Mister Brown e para Mister Brown.
No momento presente, Mister Brown está furioso. Mister Brown está de sobrecenho carregado, voz grossa:
– “As instituições correm perigo!”.
As instituições são de Mister Brown, feitas por Mister Brown para Mr. Brown. Mister Brown “no fundo tem um bom coração, é um bom sujeito”, mas na hora de fazer justiça ele é terrível! Porque a justiça é de Mister Brown, feita por Mister Brown para Mister Brown.
É justamente para acalmar os nervos de Mister Brown que eu o aconselho a ir ver a fita. Ali ele se reconfortará. Todo mundo alegre, todo mundo se curvando, todo mundo dizendo unanimemente, completamente unanimemente:
– Yes, Mister Brown.
Vá ver a fita, Mister Brown. Ela fará bem a sua alma. Ela afastará de seus olhos a triste realidade; esta vergonhosa e terrível realidade. Vá ver a fita, Mister Brown. Ela o fará esquecer que está chegando a hora em que os escravos todos – inclusive os “boys” fardados – homens e mulheres, a massa toda na rua erguerá os punhos cerrados para dizer:
No, Mister Brown.
[Diário de Pernambuco, 21 de julho de 1935. Hemeroteca da BN-Rio]
No destaque, Rubem Braga em seu jardim suspenso, no coração de Ipanema, Rio.
Tá na hora de toda gente brasileira dizer: No, mister Brown; No, mister Vale; No, mister Belmont (puro sangue de Itabira)
Isso aqui está passado no tempo e ficou só na amargura…