B.Léza: no simultâneo da sua música fica a escrita
Veladimir Romano*
Agora, quando e finalmente se celebrou o Dia Mundial da Língua Portuguesa (5 de maio), conforme reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.(Unesco), depois de vários anos de combate ao direito justificado [é bom que se diga e saiba que foi o Brasil, a primeira nação reveladora desta ideia, lutando primeiro na Assembleia Geral das Nações Unidas nos anos de 1980], na lógica e realidade dos valores da nossa Língua, hoje e sempre comemorada.
Ficou, desde então e agora mais ainda, dentro da responsabilidade de cada um mexendo com a Língua, essa defesa, divulgação e valorização para se manter este testemunho vivo.
Neste propósito, venho mais uma vez falar de B.Léza, não fosse ele tão completo, prolífero e multiplicado. Como se o tic-tac do relógio lhe marcasse o calendário de vida, B.Léza, morto aos 53 anos de existência física, podemos apreciar hoje na distância dos anos como andou numa corrida contra o tempo dando medições à sua veia criadora.
Neste ponto de contato emitido pela sua intuição, o músico, paralelamente descobriu os seus dotes musicais, e seguiu ocupando igualmente um outro lado da escrita num parecer declaradamente simultâneo, sem se atrapalhar logo no despertar da sua adolescência como se tivesse uma plataforma interna trabalhando no mesmo nível meridional utilizando algum relógio de precisão.
Em B.Léza, ir desvendando da sua personalidade e visão cultural, é permanente desafio onde a precisão, o cuidado, afirmação, exemplo e animações, são a base do rigor cuidadosamente elaborados pela mente, espírito e corpo, tudo na velocidade da luz.
Deste modo, compreender esta plataforma roteirista é quase uma seleção natural das leis impostas pelo próprio, daí a que se entenda o seu comportamento tão independente confiado ao seu saber, entrega e real conhecimento social, humano e cultural.
Tudo lhe servirá, fonte determinante, chega ao futuro de uma sociedade limitada [foi aqui nesta base que B.Léza sempre lutou nessa sua vontade de poder gravar o seu disco nos Estados Unidos onde sabia ter ele a oportunidade que nunca teria em Cabo Verde ou Portugal e assim criar uma independência maior através da sua capacidade criadora e ação cultural].
Desta sua morfologia cultural, a B.Léza, renascem-lhe intercidências, pronunciam-se energicamente diferenças pelo essencial como nenhum outro intectual do arquipélago, pela simples razão do tempo vivido, das perseguições que vai sofrendo [ainda hoje], como consequência da sua liberdade e haver nas horas de combate mais do que outros, ter ficado sempre do lado do povo.
Não é por acaso que B.Léza vai em diferentes ocasiões ao tribunal por causa das mensagens trazidas nas suas composições musicais ou da sua escrita. Procedimentos da injustiça e manutenção da pobreza, emigração forçada… revelaram-se flagrantes aos quais o autor mindelense viveu bem atento, partilhando atos solidários e até de proteção aos mais frágeis.
B.Léza elucida-se sobre origens, causas e modos deste prenúncio de apagamentos concomitantes, depois fonte na sua obra escrita e poética.
Diz ele a determinada altura, já casado e recebendo a sua musa Maria Luiza [Mica] que chega da capital do império a Cabo Verde, que o «arquipélago será algo inútil no processo colonial, mas ainda assim os portugueses não querem deixar os Caboverdianos assumir rédeas do seu destino».
Isto dito em 1945 quando B.Léza reafirmava ser “Cabo Verde uma péssima mãe aos seus, mas uma boa madrasta a quem vem de fora”, ou ainda, quando se debatia com visitas dos oficiais militares chegados do continente descobrindo Cabo Verde através da música, assistindo a momentos na Fonte Doutor Adriano, onde eram bem recebidos mas onde os debates por vezes com algum grog à msitura se incendiavam. “Melhor seria andar por Cabo Verde sozinho do que padecer como colônia.”
Assim, o caráter icónico do Dia Mundial da Língua Portuguesa, acrescenta a relevância histórica e pedagógica dos escritos de B.Léza onde se demonstra tanto quanto contista, poeta, ensaista, folclorista, novelista e autor de peça dedicada ao teatro musical, dois diários preparados em tempo oportuno de conteúdos históricos.
É o que se observa em A razão da amizade caboverdiana pela Inglaterra”, trabalho iniciado ainda na ilha de São Vicente em 1939, terminado em Lisboa em 1941, meses depois da participação na Exposição do Mundo Português [grande feira colonial], onde se inclui a letra inédita “Hitler”.
São delícias de quem deixou a Cabo Verde uma herança rica mas muito mal conhecida tanto pelas forças do regime, ainda mais por quem dirige a cultura de Cabo Verde e desgraçadamente adulterada por certos intelectuais irresponsáveis numa tentativa de tanto abafar como deturpar e monipolizarem a figura intelectual de Francisco Xavier da Cruz [B.Léza].
A morna-tango “Hitler Ca Ta Ganhá Guerra, Ni Nada!”; escrita ainda no Mindelo e logo depois de “Adolf Ca Ta Ganhá!”, esta, coladeira, escrita no final de 1939.
A publicação do livro porém, só acontece em 1950, editado no Rio de Janeiro por amigos da comunidade caboverdiana ali residentes então no Estado da Guanabara.
A realidade material e análise estrutural dos conteúdos agrupam narrativas notáveis onde a profundidade humana, manifesto intenso em potência criativa através das duplas reações na forma e realização, laços e substâncias consistentes, reivindicando amiúde justificadas questões sociais, alusões que se testemunham na sociedade contemporânea [a independência não parou o sofrimento e a discriminação ou discrepância social].
Orientações dos comentários escritos e sendo alguns deles de cariz muito forte conduziram B.Léza aos tribunais e até à polícia do Estado como aconteceu em Lisboa [1941] perante a chamada da P.V.D.E. [Polícia de Vigilância e Defeza do Estado]. Neste final temos o sintagrama partindo do paradigma no bom senso ao seu código dentro das antigas referências da cultura humanista.
Aflige a quem deseja criar com liberdade e razão declarações em plena abertura e sinceridade assumindo a sua parte responsável, no entanto, forças regimentadas coloniais ou aqueles que a representam no arquipélago não apreciavam saídas em forma de semântica de B.Léza quando afirmava:
“A virtude da pobreza não existe… é uma doença mental, é a corrente negativa do lado errado dos seres humanos, especialmente daqueles que governam sem compreender o significado expressivo da harmonia social, a prosperidade, o trabalho reconhecido como tal e o bem sucedido domínio da partilha, merecem nosso apontamento sem declarar fronteiras.”
Apontamento deste autor escrito por extratos, são uma espécie de subconsciente onde B.Léza revela espírito político, método, ordem, sugestões, reação, observações semelhantes à resistência coletiva. Uma possível “cultura e personalidade” tão estudadas por Lévi-Strauss, do psiquismo individual e da estrutura sociológica, expressão realista fazendo valer ideias.
Sem dúvida, B.Léza, no preceito da sua escrita, uma fixação eficiente, apesar por vezes dado a certas condições desfavoráveis o perturbarem, condicionarem, contudo, sem lhe retirar a energia e determinação, criou o seu objeto privilegiado ou razão dos efeitos vindos da essência humana com a densidade saída do ambiente próprio ou princípio dessa realidade caboverdiana, torna-o incisivo.
É respeitável a lista de trabalhos deixados a Cabo Verde para quem viveu apenas 53 anos e nos últimos 14, prisioneiro da cadeira de rodas, entretanto, sem que essa condição o metesse ao limite.
Sempre escreveu com liberdade e falou aquilo que bem entendeu, por isso nunca aceitou incorporar a pedido do amigo e admirador José Osório de Oliveira [culto e dedicado intelectual português, amigo de Cabo Verde e apaixonado por África]; quando este lhe pediu para incorporar a lista de poetas caboverdianos.
Novamente B.Léza é direto, esclarecedor e bem diferente ao responder ao amigo: “A sinceridade e franqueza, na Cultura, não se agasalham através da mendicidade intelectual. A fragrância da poesia dos poetas das ilhas de Cabo Verde merece respeito e, quando tudo é medido pela parede instituída pela censura, pouco fica claro e aqui se perde muito da verdade. Por isso, meu caro José, não tenho desejos de ocupar-te tempo embora gratamente agradeça esse bom cuidado”.
Muitos são os inéditos da poesia beleziana e aqui lembramos, é inevitável, nos diálogos de Platão, em “Fedro”, quando Socrates diz… «Oh! Que homem sagaz! Poderia ter escrito que é melhor ser complacente com o pobre do que com o rico, com a velhice do que com a juventude, e, regra geral, com todos os que sofrem as misérias de que pessoalmente sofro!»
Restam os contos onde B.Léza aponta e coloca diálogos metafóricos no auge dos problema ambiental e o efeito ecológico por causa do lixo, desordem e desleixo das autoridades [já o pai João Vicente combateu o desmazelo camarário].
Daqui, assumindo denúncias com mestria nestes contos de cariz popular [mau para ele visto ser funcionário], coisa que desagrada a superiores sofrendo mais tarde represálias, perseguições e até corte salarial: o conto “Passo-Pinto e Passarão”, é um destes exemplos onde a mão censória abafa a edição, mantendo-se até ao presente um atual e delicioso inédito.
Outro firme exemplo é o “Gafanhoto Salafráio”, entre mais textos de coragem já editados inicialmente ainda na sua juventude como “Meninos do Lombo” [e não nos vamos alongar]… matérias de escrita límpida, corajosa, frontal, esclarecida, com valor para hoje elucidar jovens sobre aquele tempo de forma limpa, com eloquente maturidade. Quer queiramos ou não, o passado colonial também conta e a juventude deve tomar nota deste anterior tempo à independência.
Desta forma, ler ou consultar trabalhos escritos por B.Léza é descobrir outra faceta do autor de tantas mornas, entre outros temas de considerável monta que enriquecem a cultura de Cabo Verde e pela qual deveria existir um plano ou projeto de valorização sobre esta herança que é de todos nós.
“Fragmentos”, “Flores Murchas”, “Canteiro Florido”; são o amor, a sujeição, o efeito da linguagem orgânica… enquanto “Provisórios 177” e “Mistifório”, são a política, princípio realista, civilidade, contestação, cidadania ativa. B.Léza, através de expressões adequadas ao momento, estudando o objeto, busca e coloca a jogo a consolação; seria tão direto e letal hoje, quanto o foi no seu tempo.
É preciso realizar de como mais de 40 anos depois, Cabo Verde mantém uma elevada taxa transmissora de preocupações sociais. Não podemos passar a vida nos eternos autoelogios quando quase se chega aos 40% de pobreza… absolutamente preocupante, é com realismo e oportunidade de porta aberta que os dirigentes caboverdianos insistem numa livre circulação de pessoas no espaço da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em virtude disso mesmo representar boa saída a tantos problemas que certamente não deixam dormir alguns governantes.
Qual será o futuro de Cabo Verde deveria ser tema levado a debate nacional, atraindo ao efeito grupos emigrados em particular quando temos no Ministério dos Negócios Estrangeiros o Instituto das Comunidades que até hoje ninguém foi ainda capaz em descobrir para que serve e onde param os representantes ilustres deputados em defesa das nossas comunidades.
Ora, como país condicionado, autonomia curta, problemas trágicos, prelúdio sofrido até a uma épica resistência, cada figura e património do nosso foro cultural, deveriam então obedecer há muito de maneira estratégica, inteligente, nítida e adequada, pelo designado valor nacional, ser integrador, produtivo, angariador de capitais como o fazem tantas nações.
Internacionalizar-se com sageza permitindo criar círculos económicos ao invés do conforto acomodado que se vai cristalizando na mordomia dos títulos, admirações favoráveis e enganos destes rituais políticos.
O significado interno do processo democrático não nasceu para servir apenas a uns quantos senhores montados no privilégio do poder quando a cultura e seus valores como a democracia são propriedade de e para todos.
Curiosidades
O nobre e famoso navio-escola “Sagres”, que emocionou B.Léza quando este aportou ao Mindelo, com muita honra manifestou o lado caboverdiano da nossa “morabeza”; fez o músico compor uma das suas primeiras morna-fado, estilo desenvolvido em Lisboa quando aqui viveu depois do período da grande feira colonial de 1940.
Depois a reprodução da capa de “A Razão da Amizade Caboverdiana Pela Inglaterra”, incluindo alguma correspondência trocada com a BBC; pois ao longo da Segunda Grande Guerra, a morna-tango “Hitler”, foi tocada até ao fim deste conflito pela orquestra sinfónica da BBC.
Existem ainda quatro cartas de Winston Churchill chegadas a B.Léza na altura da GG, pelo correio diplomático da embaixada britânica. No museu de Londres dedicado a WC, estão em arquivo a correspondência entre B.Léza e o primeiro-ministro inglês.
Na foto em destaque, Maria Luiza junto a B.Léza, acompanhados pelos dois cachorros: Bobby e Rodny. Um casal feliz, mas invejado por alguns, vítima sim da ignorância e ruindade alheia (Álbum de família)
A Vila de Utopia, surpreendeu-me, oh Romano!, com uma matéria sobre B. Léza, beleza pura. Fala-se tão pouco dos escritores de África , uma pena, afinal somos todos colonizadas pelos mesmos navios negreiros.
Pois pois, Tita, o cronista Veladimir é o filho mais velho di B.Léza; e já são várias as crónicas e artigos inseridos aqui no Vila de Utopia a este respeito.
Muito bom sua leitura e comentário,
Mauro
A título de informação, segue a tradução do criolo para o português de:
A morna-tango “Hitler Ca Ta Ganhá Guerra, Ni Nada!”; escrita ainda no Mindelo e logo depois de “Adolf Ca Ta Ganhá!”, esta, coladeira, escrita no final de 1939.
1- Hitler não está ganhando a guerra, de nada; e
2-Adolf não está ganhando.