Ecofeminismo, empoderamento e biografias negligenciadas: nunces e recortes
Vagner Luciano de Andrade*
O quase invisível empoderamento feminino nos tempos pretéritos do Brasil são lacunas que o povo brasileiro ainda vasculha, tentando dirimir-se. Figuras brancas como Dona Beija, Joaquina do Pompeu, Bárbara Heliodora e Marília de Dirceu, sejam musas sensuais, protótipos de esposas perfeitas ou fazendeiras carrancudas estavam longe de serem ícones de resistência.
Mas a história nos traz Dandara dos Palmares, Maria Bonita e outras tantas que fizeram de suas vidas um legado à coletividade no que se refere à luta por direitos fundamentais. Mais suas histórias foram ocultadas. Conto por que será?
Quantas histórias femininas foram anuladas, apagadas, massacradas. E eis que até nas narrativas populares, a mulher quando aparece no folclore é de uma formosura exclusivamente branca impondo um imaginário social deturpado e imbecil. Da Mãe do Ouro que povoa os rincões auríferos de Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, o padrão biológico se repete, se impõe, se desgasta.
Indígenas e africanas com sua ancestralidade, musicalidade e corporeidade vistas como aberrações numa cultura retrógrada e angustiante. O que imaginar de fascinante para as poucas mulheres dos núcleos coloniais que viviam na quase extrema clausura. Em rápidos eventos de socialização eram escoltadas por pais, irmãos ou maridos, vigiados por olhares pudorosos e malévolos.
E nos tempos de modernidade, surge a capital mineira rompendo com as paisagens pretéritas coloniais de Ouro Preto. Mas logo uma mulher loira, branca e de olhos claros se torna mito nas ruas entre o Centro e o Cemitério do Bonfim. Um padrão tenta se repetir enfiado goela abaixo. Não era para romper com o atraso da colonialidade? Mas a mentalidade não acompanhou.
O tempo passou e as vozes ou palavras de muitas brasileiras se projetaram mundo a fora. São centenas delas que projetam internacionalmente imagens positivas do povo brasileiro. Clarice Lispector e Cecilia Meireles encantaram com sensibilidades e mimos em seus escritos, mas a mineira Carolina Maria de Jesus teve pouca projeção ou reconhecimento como Escritora. Sua história a despejou de quartos confortáveis. Sua obra despejou a verdade na cara de seus opressores. Negra inserida na periferia paulistana, seu suor e sacrifícios confortaram muitos lares elitizados nas quais trabalhou exasperantemente.
Muitos desconhecem a ligação cultural de Clara Gonçalves Pinheiro com as matrizes religiosas africanas, afrodescendentes e afrobrasileiras. Essa mineira de Caetanópolis, operária da fábrica de tecidos Cedro Cachoeira, teve uma das maiores vozes da música popular brasileira. Me refiro à espetacular Clara Nunes, símbolo que a Mineiridade deve reverenciar mais como faz com JK e outros homens das Minas Gerais.
A Professora Helena Antipoff deixou a Bielorrússia, na extinta União da Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS para se tornar uma ímpar ativista socioeducacional nas redondezas da capital mineira. A francesa Danielle Mitterrand tornou-se referência na questão socioambiental para o homem pós-contemporâneo. Mas as mudanças ambientais para se reverter o quadro de degradação mundial engatinham face às tendências mercadológicas dilacerantes.
Assim, forças femininas de resistência tombaram ou se refugiaram. A missionária Dorothy Mae Stang morreu defendendo direitos de sem-terra e a floresta sagrada da Amazônia. Durvalina Gomes de Sá, e seu marido se esconderam em Belo Horizonte. Eram componentes do grupo de Lampião e Maria Bonita. Criaram a família na cidade e encontram-se sepultados no Cemitério da Saudade.
Mas a urbe que os acolheu, os desconhece, os ignora. Histórias de anulação, negligência assassinam biografias de inexprimível valor. Dona Ivana Eva Novaes de Souza foi uma discreta militante socioambiental na região do Barreiro, tendo lutado por dignidade e escrito uma trajetória incomum numa periferia condenada ao esquecimento. A luta continua!
Em tempos de árduo ativismo sociopolítico, para quem ainda acredita, a luta está ameaçada de “rápida desaparição” como foi dito ao Pequeno Príncipe acerca de sua preciosa Rosa. Mas não desanimemos, um jardim das rosas se faz e refaz no tempo. E sem desmerecer todas as lindas rosas, Marielle Franco, você nos inspira com o delicado perfume de sua essência e nos move com seu ardor por um mundo melhor, mas justo e humano.
Marielle Francisco da Silva (1979-2018) se tornou a bandeira oficial do Brasil, num contexto inflamado onde uns poucos se vangloriavam do verde e amarelo como vitória sobre a possibilidade de uma futura bandeira vermelha.
Ora, o vermelho que historicamente simbolizou o comunismo é pesadelo constante para a minoria que exige manter-se em seu pedestal. Mas nossa bandeira é vermelha sim! Vermelho da vida e da morte, com suas alternâncias, permanências e rupturas. Vermelho do sangue derramado, vermelho do sangue que borbulha em nosso organismo invocando-nos à luta.
Ela nos representa enquanto ícone de Brasilidade. Sua injusta e bárbara morte nos acordou para os absurdos quase desapercebidos diante do anestesiamento diário. São 519 anos de alienação, exclusão, desigualdade e preconceito.
O proletariado adormecia nos trens e ônibus das grandes cidades. Acordando às 04 da manhã e adormecendo as 22 horas, era inevitável não se entregar ao cansaço e esgotamento. E o Brasil se entregou e é preciso mudar isso emergencialmente.
Marielle representa o Brasil, por ser mulher, mãe, lésbica, negra. E a essência da Mãe Terra Brasilis. Seu assassinato é um grito que ecoa contra a submissão perante o sistema perverso que nos governa desde tempos coloniais.
*Vagner Luciano de Andrade é agente de educação e mobilização sociocultural da Rede Ação Ambiental
Foto: Marielle Franco, Creative Commons – CC BY 3.0 – Reprodução/Facebook
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 02/12/2019