Para não se esquecer de lembrar, a Cia. Itabirana de Teatro homenageia o poeta nos 31 anos de sua morte

Carlos Cruz

Com entrada gratuita, condicionada à lotação do teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA), com 410 lugares, a Cia. Itabirana de Teatro apresenta nesta sexta-feira (17), às 20h30, a adaptação para o palco das memórias familiares do poeta itabirano, resgatadas no livro Uma Forma de Saudade, publicado pela Companhia das Letras.

O livro foi lançado no ano passado como uma homenagem ao poeta itabirano, após transcorridos 30 anos de sua morte. O diário foi organizado e preservado pela sua filha Maria Julieta – e editado pelo neto Pedro Graña Drummond.

Cia. Itabirana do Teatro encena Uma forma de saudade, no ano passado, no Centro Cultural. Na foto em destaque, Drummond com a filha Maria Julieta (Fotos: acervos de O Cometa e de Cristina Silveira)

A apresentação da Cia Itabirana de Teatro ocorre agora como uma celebração à memória e à obra do ilustre itabirano que, cansado de ser moderno, tornou-se eterno em 17 de agosto de 1987, aos 84 anos.

Como disse na ocasião a sua cardiologista e geriatra Elizabeth Viana de Freitas, que cuidou do poeta nos seus últimos anos de vida, “Drummond morreu de amor”.

É que, 12 dias antes, faleceu também no Rio a sua filha Maria Julieta Drummond de Andrade. Para o sensível coração do poeta, o golpe foi fatal.

Exumação

Por não ter retornado a Itabira, muitos de seus conterrâneos achavam (e muitos ainda acham) que Drummond esnobava a sua cidade natal. Na última vez, ele veio à cidade natal foi em 1954 para cuidar do traslado do corpo de sua mãe, Julieta Augusta Drummond de Andrade, para que os seus restos mortais ficassem junto aos de seu pai, Carlos de Paula Andrade, no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte.

Álbum de Família: Drummond é o primeiro à esquerda. José e Altivo estão atrás, ao lado da mãe Julieta Augusta. Rosa e Mariinha ao lado do pai Carlos de Paula Andrade (Foto: Brás Martins da Costa)

“Regressei ontem a noite pela manhã de Itabira, aonde fora domingo passado, 7, para assistir a exumação dos ossos de Mamãe e à sua inumação junto aos ossos de Papai, em Belo Horizonte”, registrou o poeta em seu diário.

“Impressão: o que estava ali, roído de vermes e sujo de terra, pouco tinha a ver com minha Mãe, separado já de seu espírito, que desaparecera. Cumpríamos um dever filial e piedoso, mas não havia motivo para sofrimento; tudo estava acabado e perfeito. (…) Era quase festivo e triunfante esse encontro dos ossos, vencendo o tempo e a morte.”

Presença na ausência

Drummond, é verdade, não mais retornou a Itabira. Mas não é verdade que ele se esqueceu de sua terra natal. As suas reminiscências da infância na Cidadezinha Qualquer permeiam a sua obra. Como poeta, reverencia a sua aldeia.

Drummond com a filha Maria Julieta e amiga

Ao se ausentar fisicamente, Drummond se reservou ao direito de manter viva em sua memória a imagem de Itabira antiga, com seus pouco mais de 4 mil habitantes. Foi essa imagem de cidadezinha do interior, com casas entre bananeiras, que o poeta quis manter viva na memória.

Uma cidade com economia simples e diversificada, baseada na mineração em pequena escala, na produção de alimentos, fabricação de implementos agrícolas e até de armas de fogo, confeccionadas na antiga fábrica do Jirau, uma das primeiras siderúrgicas de Minas Gerais.

E como de “tudo fica um pouco”, ficou para ele também a lembrança de um povo culto. Itabira no início do século passado contava com jornais tipográficos que circulavam quinzenalmente, dispunha de teatro e cinema – e de bandas de música.

Poesia engajada

Mesmo não retornando a Itabira, Drummond nunca deixou de acompanhar a realidade de sua terra natal, transformada pela mineração em larga escala, explorada a partir de 1942 pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce.

E ao lamentar as perdas incomparáveis, Drummond se mostrou inconformado com a passividade do itabirano, que cruza os braços e deixa a vida passar devagar em Itabira do Mato Dentro. “Penso às vezes, cruamente, que o itabirano vendeu a sua alma à Companhia Vale do Rio Doce.”

Retrato do poeta quando jovem, com a mulher Dolores Dutra de Morais

E que ao cruzar os braços, sucederam-se as perdas incomparáveis. E assim, o poeta se manteve cético em relação à capacidade dos dirigentes políticos e empresariais itabiranos de mudarem essa realidade.

Em carta ao jornal O Cometa, por ocasião da realização do I Encontro Nacional de Cidades Mineradoras, em Itabira, Drummond manifestou a sua “impossibilidade racional de crer na letra das palavras e no discurso dos homens”, escreveu em carta datada de 9 de junho de 1984. “Minha velhice experiente me ensinou tantas coisas. Uma delas: descrença em nossos homens públicos.”

No entanto, poucos dias depois, ele encaminhou ao O Cometa os poemas O Maior Trem do Mundo e Lira Itabirana. “O rio é Doce. A Vale, amarga. Ai, antes fosse mais leve a carga/Entre estatais e multinacionais, Quantos ais!/A dívida interna/A dívida externa/A dívida eterna./Quantas toneladas exportamos/De ferro?”

Como se vê, o sentimento da cidadezinha se mistura com a do mundo. E com o ser itabirano que o poeta sintetizou magistralmente no final da crônica Vila de Utopia, de 1933.

“Ainda assim fui itabirano, gente que quase não fala bem de sua terra, embora proíba expressamente aos outros falarem mal dela. Maneira indireta e disfarçada de querer bem, legítima como todas as maneiras. E afinal, eu nunca poderia dizer ao certo se culpo ou se agradeço a Itabira pela tristeza que destilou em meu ser, tristeza minha, tristeza que não copiei, não furtei… que põe na rigidez da minha linha de Andrade o desvio flexível e amável do traço materno.”

Em defesa da terra natal

Foi Drummond quem deu repercussão nacional aos conflitos permanentes de sua cidade natal com a grande mineradora. E fez severas críticas ao sistema tributário injusto que contemplava (ainda contempla) com migalhas o município com os impostos e os royalties da mineração.

Foi com esse sentimento de injustiça que ele publicou, em 3 de outubro de 1964, a crônica Só isso?, no Jornal do Brasil: “Peço licença para fugir por alguns minutos à linha aérea e desinteressada destes escritos e tratar do assunto que compete aos doutos em lei e em economia.”

Iluustração: Genin

E o poeta prossegue: “Por trás dele, azula uma paisagem de serra, a que estou emocionalmente ligado e este é o ponto de contato entre o colunista e a matéria técnica”.

Na crônica, Drummond cita o projeto de criação do Imposto Único sobre os Minerais (IUM), mas que se apresenta com uma distribuição extremamente injusta para os municípios mineradores.

“O produto da arrecadação desse imposto será distribuído entre a União, os Estados e os Municípios, e é claro que não pode ir para Sancho, Martinho e esse vosso criado. Mas a União terá 10%, o Estado 70% e o Município apenas 20%, o que me parece terrivelmente injusto.”

O poeta lembra que para o município, minério “é riqueza que não se recompõe, e com a exploração intensiva se esgota para sempre”. Profético? Não. Realista.

Ainda na crônica, Drummond considera que “os 20% destinados aos municípios – só isso? – em contraste com os 70% atribuídos aos Estados, têm algo de mesquinhamente ridículo, que não pode passar despercebido à sensibilidade municipal de nossos legisladores, na maioria procedentes de pequenos núcleos habitacionais, onde a miséria coletiva definha sob a miséria dos orçamentos”.

E assim, em seus poemas e crônicas, o poeta seguiu descrevendo as perdas incomparáveis, manifestando o seu ceticismo com relação ao futuro da cidade após a exaustão final. Infelizmente, até aqui, as suas advertências pouco valeram.

A cidade viu o bonde da história passar, não diversificou a sua economia, mantendo-se ainda extremamente dependente da mineração. E agora cisma coletivamente, como antes era atributo quase que só dos Tutus Caramujos, com a derrota incomparável que inevitavelmente virá com o fim do minério. A cidade certamente sobreviverá, mas permanecerá para sempre o sentimento de tempo perdido, quando ainda havia riqueza do tamanho do Cauê.

Memória revivida

Parte das reminiscências do poeta passadas em sua terra natal, principalmente de seus familiares, será encenada –e cantada – nesta sexta-feira, às 20h30, no teatro do Centro Cultural, resgatadas do livro de memória Uma forma de Saudade, .

São essas lembranças que a Cia Itabirana de Teatro transpõe para o palco, com declamação de trechos do livro epoemas musicados pela mais longeva trupe itabirana.

Para organizar o acesso do público, serão distribuídas senhas meia hora antes da apresentação. Vale assistir – e se emocionar.

 

 

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