Obra de Radamés Gnattali retorna ao cenário musical
Lenin Novaes*
Este ano de 2018 marca os 30 anos da morte do compositor, pianista e arranjador gaúcho Radamés Gnattali, nascido em 27 de janeiro de 1906 e que faleceu no dia 13 de fevereiro de 1988, no Rio de Janeiro, aos 82 anos de idade. Ele, que integrou a Academia Brasileira de Música, iniciou os estudos com a mãe, Adélia Fossati Gnattali. Prosseguiu com Fontainha, no Conservatório de Música de Porto Alegre. Praticou violão e cavaquinho, tocando em grupos de música popular, bailes, cafés e cinemas. Tendo se tornado concertista se transferiu para o Rio, onde deu recital no Instituto Nacional de Música com repertório incluindo a Sonata em si, de Liszt. Parte de sua extensa e significativa obra musical volta ao cenário musical brasileiro.
Neste mês de julho, cinco obras compostas por Radamés Gnattali para piano, violino e violoncelo foram lançadas em disco pelo Trio Puelli, integrado por Karin Fernandes, piano; Ana de Oliveira, violino; e Adriana Holtz, violoncelo, e que tem a finalidade de tocar músicas dos séculos XX e XXI, sobretudo temas de compositores brasileiros. O projeto de recuperação e catalogação da gravação foi feita com colaboração de Roberto Gnattali, sobrinho de Radamés. Foram encontradas partituras e manuscritos de todos os temas compostos por Radamés para trio de piano, violino e violoncelo, alguns inéditos em disco, caso da peça intitulada Trio nº 2, obra sem partitura, encontrada pelo Puelli somente em um manuscrito já em péssimas condições de conservação.
Com repertório integrado pelas obras Trio nº 1, (1933); Trio nº 2, (1967); Trio nº 3, (1984); Trio miniatura, (1940), e Lenda nº 2 (1937), o álbum do Trio Puelli foi gravado em setembro de 2017 no Auditório Zequinha de Abreu, na EMESP Tom Jobim, na cidade de São Paulo (SP).

Radamés ingressou como pianista na Rádio Clube do Brasil e, depois, na Rádio Mayrink Veiga. O início de Radamés na Rádio Nacional pode ser considerado um marco na história da música popular brasileira. De pianista passou a arranjador e foi nessa atividade que suas inovações tornaram-se marcantes. A formação de compositor clássico foi básica para o enriquecimento dos arranjos populares. Radamés introduziu cordas nas músicas românticas e metais nos sambas, dando a eles um caráter sinfônico.
Durante a carreira Radamés transitou com igual desenvoltura entre a música clássica, que em declarações dizia preferir, e a música popular, que garantia sua renda. Ao mesmo tempo em que deu tratamento sinfônico aos arranjos populares, aproveitou em sua obra procedimentos melódicos e harmônicos tirados da música popular e do jazz.
Além do trabalho nas rádios, Radamés criou trilhas para o cinema, com destaque para os filmes Tico-tico no fubá, de Adolpho Celi, e Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte, ambos de Nelson Pereira dos Santos, primeiro cineasta a ingressar na Academia Brasileira de Letras e que morreu dia 21 de abril.
A obra de Radamés é vasta e nela se destacam principalmente os concertos e obras sinfônicas. Para amigos escreveu uma quantidade enorme de concertos. Para violão escreveu para Garoto, Dilermando Reis, Laurindo Almeida e José Menezes. Concerto para violoncelo foi dedicado a Iberê Gomes Grosso e os de violino para Oscar Borgerth e Romeu Ghipsman. Para Jacob do Bandolim escreveu a “Suíte Retratos” para bandolim e orquestra de cordas e para Joel Nascimento, o concerto para bandolim e cordas. O artista Chiquinho do Acordeon mereceu concerto para acordeon, tumbadora e orquestra e, ainda, Edu da Gaita, concerto para harmônica e orquestra.

Os temas populares brasileiros sempre foram fonte de inspiração para Radamés Gnattali. Na Brasiliana nº6 para piano e orquestra utilizou o tema da famosa canção gaúcha Prenda minha. Na Sinfonia Popular nº1, o segundo movimento é baseado no tema de um pregão baiano chamado Flor da Noite. O ritmo do toque do berimbau foi usado para construir a Capoeira, movimento final da Brasiliana nº3, de 1948. A série de Brasilianas, aliás, é uma espécie de síntese da obra de Radamés Gnattali. Nela encontramos toda a riqueza da música brasileira em formações as mais variadas que vão desde o piano e o violão solo até a grande orquestra sinfônica com e sem solistas. Em 1983 ele recebeu o Prêmio Shell de música e foi homenageado em concerto no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentando-se como pianista, regente e compositor.
Trajetória
Radamés era filho primogênito de Adélia Fossati e do imigrante italiano Alessandro Gnattali, radicado em Porto Alegre, O pai, marceneiro, era apaixonado pela música, sobretudo pela ópera e, logo depois que chegou ao Brasil, começou a tomar aulas com César Fossati, chegando, anos depois a se tornar músico profissional, tocando fagote e, posteriormente, passando a regente. Os nomes dos primeiros filhos do casal (Radamés, Aída e Ernâni) são personagens de óperas de Verdi. Demonstram a paixão que ambos nutriam pela ópera, fato que se refletiria na decisão dos filhos em seguir a carreira de músicos. Anos depois o casal completaria a família com mais dois filhos: Alexandre e Teresinha.
Radamés começou a aprender a tocar piano ainda menino. Ao mesmo tempo iniciou-se nos estudos do violino com a prima Olga Fossati. Aos nove anos foi condecorado com uma medalha pelo cônsul da Itália, na Sociedade dos Italianos, por sua atuação como regente de uma pequena orquestra infantil, que tocou arranjos feitos por ele.

Em Radamés Gnattali: o eterno experimentador, biografia escrita por Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos, pode-se conhecer esse fato nas palavras do próprio Radamés, onde relata o fato de que “apareceu lá uma ‘trupezinha’. Um teatro mambembe. Tinha um pianinho, um violino, uns cinco ou seis instrumentos. E eu fiz os arranjozinhos, e dirigi a orquestra. Dirigi nada… Palhaçada”.
Aos 14 anos entrou no Conservatório de Porto Alegre para estudar piano, ingressando no 5º ano. Aprimorou-se também no violino, estudando ao mesmo tempo solfejo e teoria musical. Nessa época, já frequentava blocos de carnaval e grupos de seresteiros. Nessas ocasiões passou a tocar violão e cavaquinho. Até se formar no conservatório, estudava para ser concertista, como aluno do professor Guilherme Fontainha e tocava com a Jazz Band Colombo, fazendo as ‘trilhas’ dos filmes mudos exibidos no Cine Colombo.
Em 1923 terminou com mérito o 8º ano do curso de piano e logo foi levado por seu mestre ao Rio de Janeiro para um recital. Vários jornais destacaram sua triunfal atuação. Retornando à cidade de Porto Alegre, concluiu com medalha de ouro o curso de piano no Instituto de Belas-Artes de Porto Alegre. Na ocasião da primeira estada no Rio de Janeiro conheceu o compositor Ernesto Nazareth, que costumava ouvir do lado de fora do cinema Odeon, na Cinelândia. Em 1924 conheceu Vera, aluna de piano, com quem se casou em 1932 e viveu por 33 anos, até 1965, quando ficou viúvo. Com ela teve dois filhos: Roberta, que se tornou psicanalista, e Alexandre, formado em odontologia e que se dedicou à filosofia e ioga.
Em 1966 passou a viver com Nelly Martins, ex-atriz da Rádio Nacional, cantora e pianista que, abandonando a carreira artística, acabou se formando em medicina. Em 1986 ele sofreu derrame, fato que o obrigou a longo tratamento para voltar a tocar. Faleceu após dois anos sofrer outro derrame.
Em 1933 teve gravadas as suas valsas Saudosa e Vibrações d’alma pela Orquestra Típica Victor, na qual atuou como pianista, além de fazer arranjos e, posteriormente, passar a regente. Em 1934 seu choro Serenata do Joá e sua valsa Vilma foram gravadas por Luiz Americano. Ele participou da inauguração da Rádio Nacional, onde atuou como pianista, solista, maestro, compositor, arranjador e permaneceu na emissora por 30 anos.

No ano de 1935 voltou a ter músicas gravadas pela Orquestra Típica Victor: a valsa Berenice; a polca-choro Estilo de vida e os choros Tristonho, Saudoso e Dengoso. Teve gravadas as valsas Às duas da manhã; Primavera de amor e Zeli, e o choro Amoroso. Gravou com o Trio Carioca, em 1937, seus choros Recordando e Cabuloso. No mesmo ano fez arranjos para a valsa Lábios que Beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo, gravada por Orlando Silva, com grande sucesso. Em 1938 teve a valsa Súplica de amor, parceria com Luiz Peixoto, gravada por Nuno Roland.
Em 1939 teve o choro Alma brasileira e a batucada Eu hei de ver você chorar, esta com vocal de Nuno Roland, gravadas pela Orquestra Odeon. Nesse ano foi escolhido como um dos representantes brasileiros na Feira Mundial, de Nova York. Logo depois Rapsódia brasileira foi interpretada pela Orquestra da Rádio de Berlim. Regeu as orquestras das rádios Mayrink Veiga e Nacional no espetáculo Joujoux e balangandãs, apresentado no Teatro Municipal e no qual foi tocada sua famosa orquestração para Aquarela do Brasil, de Ary Barroso.
Com esse arranjo, Aquarela do Brasil foi gravada por Francisco Alves. Incorporou-se de tal maneira à música que é impossível dissociá-la da música, pois, esse arranjo, é ainda hoje sucesso nacional e internacional. Outros arranjos importantes foram realizados para Carinhoso e Rosa, de Pixinguinha, e Meu consolo é você, de Nássara e Roberto Martins, gravados por Orlando Silva.
Em 1945 seus choros Mulata Risoleta e Olhe bem pra mim, com Alberto Ribeiro, foram gravados por Nuno Roland. Ano seguinte teve os choros Saltitante e Sofisticada gravados pela orquestra Rio Serenaders. Em 1948 gravou ao piano os sambas A saudade mata a gente, de João de Barro e Antônio Almeida e Copacabana e Fim de semana em Paquetá, de João de Barro e Alberto Ribeiro.
Em 1951 o samba-choro Salamaleque e o choro Na gafieira, ambos em parceria com Valdemar de Abreu, o Dunga, foram gravados pelo Quinteto Todamérica. Em 1952, gravou ao piano o mambo Mambolero, de sua autoria e José Menezes, e o fox-trot Improviso, um arranjo seu sobre motivo de Chopin. Em 1953, gravou com sua orquestra, de sua autoria e Laurindo Rabelo, a Fantasia brasileira e o samba-baião Rapsódia brasileira. No mesmo ano, gravou ao piano uma série de oito obras de Ernesto Nazareth, os tangos Odeon; Tenebroso e Fon-Fon; as polcas-choro Ameno Resedá e Apanhei-te cavaquinho; as valsas Expansiva e Confidências e a toada-característica Batuque. Também gravou mais quatro discos com sua orquestra, registrando o choro Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro; os sambas-canção No rancho fundo, de Ary Barroso e Lamartine Babo, e Linda flor, de Henrique Vogeler; as canções Casinha pequenina, de domínio público; Guacira, de Hekel Tavares e Joracy Camargo, e Luar de Paquetá, de Freire Júnior e Hermes Fontes, e o tango Despertar da montanha e a valsa Nuvens, de Eduardo Souto.
Gravou com sua orquestra em 1957 as valsas “Clube XV”, de Oscar Ferreira e “Saudades de Ouro Preto”, de domínio público. Nesse ano, lançou o disco Valsas da minha terra, no qual interpretou valsas clássicas como “Minha valsa” e “Branca”, de Zequinha de Abreu; “Abismo de rosas”, de Américo Jacomino; “Rapaziada do Brás”, de Alberto Marino; “Saudades do Matão”, de Jorge Galati e Raul Torres; “Velho realejo”, de Sady Cabral e Custódio Mesquita; “Deusa da minha rua”, de Jorge Faraj e Newton Teixeira e, “Alma dos violinos”, de Lamartine Babo e Alcyr Pires Vermelho. Lançou em 1958 o disco Radamés e a bossa eterna, no qual interpretou doze obras de sua autoria, sendo dez delas compostas apenas por ele: “Papo de anjo”; “Puxa puxa”; “Bolacha queimada”; “Pé de moleque”; “Zanzando em Copacabana”; “Gatinhos no piano”; “Vou andar por aí”; “Cheio de malícia”; “Escrevendo para você” e “Seu Ataulfo”, além de “Amargura”, com Alberto Ribeiro, e “De amor em amor”, com Silva Costa.
Lançou em 1963 o disco Segredo para dois, com um repertório de músicas românticas como Samba de uma nota só, de Newton Mendonça e Tom Jobim; Saudade querida, de Tito Madi; Ser só e Segredo para dois, de Fernando César e Ted Moreno; Céu e mar, de Johnny Alf; Pior pra você, de Almeida Rêgo e Evaldo Gouveia, e O amor e a rosa, de Pernambuco e Antônio Maria. Em 1964 gravou com Jacob do Bandolim o disco Retratos – Jacob e seu bandolim com Radamés GnattaliI e orquestra para o qual compôs a série Retratos homenageando os compositores Pixinguinha, Ernesto Nazareth; Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga, além de obras como Uma rosa para Pixinguinha e Moto contínuo.
Em 1982, gravou ao piano, com Raphael Rabelo ao violão, disco em tributo ao violonista Garoto, que incluiu as obras Desvairada; Gente humilde; Enigmático; Nosso choro e Duas contas, todas de Garoto, além de Concertino para Violão e Piano, uma redução do Concertino nº 2 para Violão e Orquestra; Allegro moderato; Adágio (Saudoso) e Presto (Com espírito), todas de sua autoria. Em 1985 lançou disco interpretando obras de sua autoria homenageando três músicos e por eles foi homenageado: Tom Jobim, Capiba e Paulinho da Viola, nas músicas Meu amigo Radamés, de Tom Jobim; Meu amigo Tom Jobim, de sua autoria; Sarau para Radamés, de Paulinho da Viola; Obrigado, Paulinho, de sua autoria; Capibaribe, de sua autoria, e Um choro para Radamés, de Capiba.
No ano de 1990, dois anos após sua morte, o selo Kuarup lançou o disco Radamés Gnattali e a música popular, que incluiu obras como Remexendo; Maneirando; Amargura; Negaceando e Concerto para acordeon, tamboras e cordas, todas de sua autoria. Um ano depois, a mesma gravadora lançou o disco Radamés Gnattali/Waldemar Henrique – 80 anos de música brasileira, homenageando os dois músicos. No disco foram gravadas suas obras Concerto para bandolim e cordas, dedicado a Joel Nascimento, e Suíte antiga para cordas, dedicado a Orquestra de Cordas de Blumenau.
Em 2002 Radamés Gnattali foi o grande homenageado na grande final do Festival Chorando no Rio, promovido pelo Museu da Imagem e do Som (MIS), apresentado por Ricardo Cravo Albin e transmitido para todo o país pela TV-E, na Sala Cecília Meirelles, no Rio, quando sua suíte Retratos foi apresentada. Participei do festival, integrando o MIS, como um dos coordenadores.