Aquilo que não sinto em mim

Imagem: Freepik

Por Milton Rezende*

As portas

 

As portas estavam fechadas

e levei algum tempo

para interpretá-las assim.

 

Na verdade essa tarefa

consumiu minha energia

e os meus olhos de ver e sentir

a cidade que se espraiava

(como um convite) até o horizonte.

 

Curioso era o mistério

de toda a cidade manter

as suas portas fechadas.

 

Passei toda a minha vida

ao pé destas portas indagando

por obra de quem, acaso e quando

elas se fecharam.

 

Não posso dizer que acreditava

na possibilidade de que um dia

elas viessem a se abrir, mas

queria saber o porquê de estarem fechadas.

 

Foi quando então percebi

(no fim já de minha capacidade

de espera analítica) que as portas

sempre estiveram fechadas.

Jornaleiro

 

O menino vendendo o jornal

grita pelas ruas da cidade

com sua voz mecânica

(misto de automatismo e resignação).

A tristeza feita esquecimento

na sobrevivência através de palavras

rápidas e mal articuladas,

“olha o diário olha o diário”.

Naquela noite, ao voltar pra casa,

o menino morreu no trânsito,

e no dia seguinte

a sua morte não foi noticiada no jornal.

Ser

Não tenho que estar aqui

ou em qualquer parte.

 

Não tenho por que sentir

desta ou de outra forma

aquilo que não sinto em mim.

 

Nada justifica ou nega

a minha existência,

mas reforça a tese

da inércia como norma.

 

Mas se estou inerte

a minha inércia é uma postura.

É um estar aqui.

 

O que sou é este vazio em mim.

Este ímpeto não direcionado

a pulsar num imenso vácuo.

Um deserto interior a buscar água

num deserto exterior projetado.

 

Sou esta ânsia e esta calma.

Sou uma coisa e outra e não sou nada.

Sei que existo e saber isso não me ajuda

(a consciência que tenho de estar acordado

é a certeza que tenho de não estar dormindo).

 

Sei que posso mudar alguma coisa,

uma vez que tenho espaço físico

para agir como se fosse livre.

Mas nada do que eu fizesse teria significado.

 

Seria um trocar de camisa

depois de um suposto banho.

Seria como atravessar a rua

trazendo a outra margem dela até mim.

Serei sempre eu mesmo e na pior circunstância

de nada ter mudado em essência.

 

Sou isto:

Um porão vazio

abarrotado de quinquilharias.

Árvores

Há na rua uma árvore

cuja beleza consiste

apenas em existir e

estar ali, ao vento.

 

Ela simplesmente existe

e nos transmite a mensagem

que eventualmente quisermos

lhe atribuir à distância.

 

Seu discurso, para si mesma,

é a propagação de sua sombra

na coreografia de suas folhas

e sua linguagem é a do silêncio.

 

Esta árvore não diz nada

de coisa nenhuma. A metafísica

está no bêbado que lhe atribui

significados além do estar-ali.

 

Aquela árvore será sempre

(para aquém e além dela mesma)

exclusivamente árvore e isso

é tudo. O mais é estar a vê-la.

 

Subitamente um carro passa na rua

e arranca as folhas da nossa árvore.

Como não temos galhos para protestar

escancaramos os dentes e voltamos

putos pra casa.

Obstáculos

 

O homem

chega até

a vidraça

fechada

e observa

a chuva.

 

A chuva

chega até

o homem

fechado

e observa

a vidraça.

 

A vidraça

fica entre

universos

interpostos

e observa

a cena.

*Poemas publicados originalmente em O Bule.

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