Viagem na memória do tempo no Quilombo Morro de Santo Antônio
José Norberto de Jesus*
O começo da história da certificação das terras
Alguns aspectos decorrentes desde o período da abolição da escravatura vão, desde então, esvaziando os quilombos, por falta de opção e de políticas que lhes garantam cidadania e vida digna no lugar onde nasceram.
Não foi fácil o reconhecimento da comunidade como povo tradicional. Lembro-me que a correria exigiu paciência nas idas e vindas à Câmara Municipal de Itabira, em contato direto com o vereador Solimar José.
Juntamente com o seu gabinete foi feito o encaminhamento do projeto para aprovação junto à Fundação Palmares, em Brasília, o que ocorreu no 5 de fevereiro de 2011.
Com as Certificações das Terras do Quilombo Morro de Santo Antônio, no município de Itabira, Minas Gerais, encerra-se, assim, um período de angústia e reconhecimento do lugar em que a maioria dos moradores nasceu e ainda mora. Leia mais aqui.
Libertas Quae Será tamem
Veio a “carta de aforria” depois desta emblemática luta. Mas ainda há muito por se fazer. Embora o vereador Solimar tenha prestígio político junto ao governo municipal, ainda não foram implementadas políticas públicas para o desenvolvimento de projetos à altura do reconhecimento da comunidade quilombola Morro de Santo Antônio, pelo seu significado histórico e cultural.
É preciso definir e incrementar uma política diferenciada para que o Quilombo se transforme em um importante equipamento para o incremento, inclusive, do turismo, pelo potencial que a comunidade apresentar.
Até então, já transcorrido quase uma década do reconhecimento oficial como comunidade quilombola, nada foi implementado pelo governo municipal no sentido de reconhecer à altura o papel de resistência da comunidade. Aliás, as precárias condições de vida e subsistência continuam as mesmas, com os moradores vivendo no dia a dia a dura labuta para sobrevivência.
Essa falta de apoio do institucional que trata o índio e o negro como se fossem “comum de todos”, além de deixá-los expostos, acabam tornando-os reféns à própria sorte.
O ideal àquela época da certificação teria sido se o governo municipal, por meio da então Seção Para Promoção da Igualdade Racial, ainda na administração do prefeito João Izael, tivesse estabelecido uma política diferenciada para substanciar o quilombo de modo e que à comunidade fosse destinado um tratamento especial. Isso teria evitado um êxodo de jovens, que poderiam ter permanecido o povoado.
Como quilombo, são muitos os potenciais turísticos que poderiam ser explorados, tornando atrativos, com farta produção local no artesanato e nas diferentes formas de manifestações artísticas ainda atuais e as antigas que poderiam ser resgatadas.
E própria agricultura de subsistência, se incentivo houvesse, poderia dar um salto, diversificando a produção e oferecendo produtos de qualidade ao mercado.
Sem isso, o que se vê é a busca por uma vida melhor nos grandes centros urbanos, o que remete os moradores aos subúrbios urbanos, com todas as mazelas e dramas.
Por essas e outras, vulneráveis e sem apoio dos poderes vigentes, e sem uma política consistente capaz de retribuir a eles os esforço desprendidos e de encontro com as necessidades reais para eles. Sem uma pauta de realizações para assegurar a sustentabilidade da comunidade, é preciso buscar formas de organização para pressionar pelas reivindicações da comunidade, que são justas e necessárias.
Com o êxodo, a identidade local deixa de existir com a influência do chamado “mundo global”. Perde-se assim a vida coletiva com as suas tradições e religiosidade, num contexto em que a união é sempre uma palavra de garantia e manutenção dos valores comunitários.
Vida que segue
Povo religioso e fervoroso vai, aos poucos, observando a interferência de outros credos, que acabam comprometendo a tradição local, que tem na fé e na aglutinação dos povos quilombolas espalhados pelo país afora, com os encontros que tradicionalmente acontecem nas comemorações festivas e religiosas tradicionais no mês de junho.
É quando se realiza a festa santeira do devoto Santo Antônio, no dia 13 de junho, “santo padroeiro”, reverenciado pelo povo do Morro Santo Antônio, que reúne toda irmandade nessa época.
Festa que devido à pandemia foi suspensa neste ano, o que pode comprometer os demais eventos do segundo semestre.
Ritual
Em meio à festa, composta de um calendário que permitia uma diversidade na programação, que ia da missa celestial num misto de catolicismo com os desdobramentos afro, era comum inserir na agenda, atividades que contribuíam para a discussão dos problemas comunitários.
Isso ocorria por meio da Associação Comunitária Morro Santo Antônio, entidade sob o comando do presidente, Moisés Batista Mendes. É ele quem responde politicamente pelo quilombo nas discussões institucionais ou de qualquer outro caráter. Visa sempre o desenvolvimento das festividades que normalmente se estende durante toda a semana no quilombo, com festas dançantes, batuques, comensais, e muita troca de ideias.
Nessa época, as festas na Comunidade Quilombola do Morro Santo Antônio consistem na maneira comum de atrair quem mora em outras localidades, mas que não abandonam as práticas antigas de convivência no quilombo.
São momentos de reuniões para troca de experiência e informações que enriquecem a comunidade.
O “Bastão” não perdeu a majestade
A festa celebrativa dos 97 anos de Maria Gregória Ventura, mais conhecida por todos e todas como dona Tita, a maior referência dos quilombolas na região, será reservada aos familiares e aos mais próximos.
O que é lamentável, pois, quem conhece a dona Tita sabe da pessoa espontânea e comunicativa, digna de empunhar este bastão pela grande pessoa que é, embora no tamanho seja uma pessoa de pouco mais de metro e meio.
O que importa é a história de vida, espontaneidade e conhecimento de uma pessoa sábia, alegre e descontraída. Em síntese, o Morro está para lá de bem representado.
Por tudo que lutou dona Josefina, antiga matriarca da comunidade, falecida aos 118 anos, para que as tradições fossem mantidas, fica perdido quando não ocorre o real reconhecimento dos valores e das tradições locais. O que ficou foi o bastão de “Zefina”, do qual dona Tita se tornou guardiã, dele tomando conta com zelo.
Um seminário para depois
O Seminário Quilombola, que estava programado para este ano como forma de buscar alternativas para melhoria de vida da população, com as propostas apresentadas pela presidência da Associação Comunitária da Comunidade, ficará para o pós-pandemia.
Mas, se não será possível realizar o seminário, novas formas de ações estão sendo reinventadas pelas pessoas da comunidade, que driblam o ócio com muita criatividade.
Exemplo disso são os trabalhos dos artesãos, com belos artesanatos de formatos originais que retratam o dia a dia no Morro. As entalhadeiras e ferramentas criadas por eles mesmos, não dão sossego aos pedaços de madeira. Criam formas diferenciada e atrativas, ornadas em bambus, com resultados encantadores.
A gastronomia também vem se inovando com a descoberta de receitas antigas antes desconhecidas de doces e quitandas, que trazem novos sabores sem perder a tradição que caracteriza o toque quilombola.
A novidade que poderá trazer grandes benefícios para a geração de novas rendas para a comunidade, além de poder ser um atrativo a mais para quem gosta de viajar no tempo, está voltada para a instalação da redescoberta de uma engenhoca, cuja prática usual advém dos tempos primórdios do quilombo.
A comunidade está aproveitando a quarentena para readequar aos novos tempos, aperfeiçoando-a às novas práticas de seu utensílio na produção das atividades que estão sendo programadas para aquecer as ofertas do novo negócio, aliviando a alma e, ao mesmo tempo, se preparando para o futuro.
Retomada de tempos perdidos
Passada a pandemia, o que se espera é a comunidade apresentar ao poder público as suas reivindicações, para que possa seus valores culturais, espirituais, e assim fazer frente, com criatividade, à crise que está prevista para os próximos anos.
Que a pandemia sirva de referência para que os governos revejam práticas que estão aniquilando as culturas tradicionais. Tais medidas implicam colocar um novo olhar capaz de sensibilizar com a dura realidade a que eles estão sendo submetidos, que não condiz com o universo real da vida a que estão acostumados a viver.
É urgente pensar e agir para impedir que essas comunidades tradicionais entrem em colapso, com políticas públicas destinadas a promover a cultura e o desenvolvimento dos meios de subsistência locais. Tudo isso vai depender de políticas de incentivos financeiros para implementar ações que lhes permitam vencer a crise.
Que as crianças dessas comunidades não percam a referência das raízes, ministrando e valorizando a história local e do povo negro, oriundo da África.
Ao governo atual e ao próximo que virá com as eleições municipais deste ano, deixo algumas sugestões:
– Que seja introduzido o ensino afro no quilombo:
– Criar uma Carteira (Banco ou Governo) de capital diferenciado para ser aplicado nas políticas econômicas, com vista a incentivar e estimular o povo quilombola a desenvolver as suas aptidões, aprendendo práticas da economia, para se tornar empreendedor competitivo na sociedade capitalista e desigual, principalmente para quem vive na zona rural. Já se vão mais de 300 anos pós abolição sem uma política direcionada para a evolução e crescimento do povo afro-brasileiro tradicional.
Valorização e resgate cultural
No país, fala-se em cultura, turismo e educação de forma excludente. Não se leva em conta o negro do quilombo, misturando com a educação convencional, matando a raiz da educação e da cultura.
O que temos visto em algumas regiões, principalmente no Nordeste. é um turismo convencional, com grandes empreendimentos que promovem uma distribuição desigual de custos e benefícios, que recaem sobre as comunidades tradicionais, enquanto os benefícios são usufruídos pelos “não comunitários”, sejam estes empresários ou turistas.
Tais custos são ilustrados pelos impactos socioambientais sobre as terras que asseguram reprodução simbólica e de subsistência, implicando na precarização de tais ambientes.
Destaca-se, ainda, a privação territorial a partir da privatização de acessos dada mediante compra de terras por empresários e veranistas. Isto por lá, aqui, o Quilombo Morro Santo Antônio segue também perdendo as suas características pela presença de invasores, que compram terras, mesmo sabendo que elas não podem ser certificadas pela prefeitura.
Com isso, esses “estranhos” acabam interferindo no modo de viver dos quilombos, excluindo os quilombolas de seu próprio território, com a aculturação e adoção de outras práticas que antes eram estranhas à comunidade.
Tudo isso sem falar das religiões, que afrontam a religião nativa com a introdução de práticas duvidosas de outras igrejas ou credos. Interferem negativamente na vida social, cultural e religiosa do quilombo, gerando sentimentos de animosidade antes jamais vistos.
*Colaboração: Mauro Moura e Vinícios Aparecido de Souza
Belíssimo trabalho da Elizabeth e equipe em promoção vida certificação do quilombo! Que esse seja apenas o primeiro passo de uma história mais feliz de agora em diante!
Muito amor envolvido!
Viva a resistência!